
O Ceará vive, há quase três décadas, um impasse que atravessa gerações de lideranças locais, já que a criação de novos municípios está paralisada desde 1992, quando Choró, Itaitinga e Fortim se tornaram as últimas cidades cearenses a conquistarem autonomia política. Desde então, 75 distritos aguardam a chance de decidir, por plebiscito, se desejam se emancipar das sedes às quais pertencem.
O desejo de emancipação é mais do que um resquício do passado. Ele reflete um sentimento persistente de pertencimento local e a busca por reconhecimento institucional de comunidades que, muitas vezes, já funcionam como centros urbanos consolidados. A indefinição jurídica, porém, transformou essa aspiração em um limbo administrativo que dura quase 30 anos.
A raiz do problema é legal. A Emenda Constitucional nº 15, aprovada em 1996, determinou que a criação, fusão e desmembramento de municípios dependem não só de lei estadual, mas também de uma lei complementar federal que defina critérios válidos para todo o país. Essa regulamentação nacional jamais foi aprovada, e o resultado é o bloqueio de dezenas de processos em estados como o Ceará, que, historicamente, se destacou pela intensa reorganização territorial.
Antes da emenda, o Estado havia passado por um ciclo de multiplicação de cidades, especialmente entre os anos 1980 e o início dos anos 1990. A Constituição de 1988, ao descentralizar competências e aumentar a participação dos municípios nas transferências federais, estimulou a criação de novas prefeituras. O movimento, entretanto, perdeu força quando o Congresso Nacional travou a regulamentação das emancipações.
Vazio normativo
Para o doutor em Geografia e analista de políticas públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Cleyber Nascimento de Medeiros, o Ceará é um dos estados mais impactados pela ausência dessa lei federal. “O principal fator é jurídico e institucional. Desde a Emenda Constitucional nº 15, a criação de municípios depende de uma lei complementar federal que nunca foi aprovada. Isso criou um vazio normativo”, explica.
A tentativa de resolver o impasse em âmbito estadual também encontrou limites. Em 2009, o Ceará aprovou a Lei Complementar nº 84, que define critérios técnicos e demográficos para a criação de municípios. Contudo, sem a lei nacional, o processo continua paralisado. “Mesmo com essa lei estadual, a ausência de regulamentação nacional impede que novos municípios sejam efetivamente criados até hoje”, afirma Cleyber.
Os estudos técnicos exigidos para avaliar a viabilidade de uma emancipação são complexos e envolvem múltiplas dimensões, como populacional, fiscal, administrativa e territorial. Eles precisam demonstrar que o distrito tem porte suficiente para sustentar sua estrutura própria e oferecer serviços públicos sem comprometer a arrecadação. Entre os critérios estão população superior a oito mil habitantes, eleitorado equivalente a pelo menos 40% do total, um centro urbano consolidado e capacidade de arrecadar tributos locais.
Mas a motivação para a emancipação nem sempre é apenas financeira. Segundo Cleyber, ela nasce da combinação de três fatores: identidade local, economia e política. “Muitas vezes, a demanda surge de questões de pertencimento. Existem comunidades que se sentem historicamente distintas da sede municipal e buscam autonomia administrativa. Outras veem na emancipação uma forma de aproximar a gestão das suas necessidades cotidianas. E há também, claro, interesses políticos envolvidos.”
No caso cearense, o fenômeno é ainda mais acentuado porque o Estado possui uma estrutura territorial fortemente organizada. São cerca de 800 distritos espalhados pelos 184 municípios — um número expressivo quando comparado a outras unidades da federação. Além disso, o Ceará mantém um trabalho contínuo de revisão e atualização de seus limites municipais, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o próprio Ipece. O projeto Atlas de Limites Georreferenciados dos Municípios Cearenses busca corrigir imprecisões históricas e consolidar a presença institucional do Estado em cada território.
Essa organização, embora traga benefícios técnicos, também amplia o debate sobre a autonomia local. “O Ceará apresenta uma proporção elevada de distritos com pleitos de emancipação em relação ao total de municípios. Isso reflete tanto o nível de organização territorial quanto o desejo de reconhecimento e autonomia de comunidades que já têm estrutura consolidada”, pontua Cleyber.
O tema voltou a ganhar força em 2025, com o Supremo Tribunal Federal (STF) analisando uma ação que questiona a omissão do Congresso Nacional em regulamentar a matéria. Enquanto a Corte não decide e o Legislativo não avança, os distritos permanecem em um limbo.
Para Cleyber, a emancipação ainda pode ser uma ferramenta legítima de desenvolvimento, desde que usada com critérios técnicos e responsabilidade fiscal. “Criar um novo município não garante desenvolvimento por si só. Mas, em situações específicas, quando o distrito já tem economia dinâmica, infraestrutura consolidada e certo isolamento geográfico, a emancipação pode representar eficiência administrativa e melhor qualidade de vida para a população.”
Entre a vontade de se tornar cidade e a necessidade de sustentar uma máquina pública, o Ceará segue no meio de um impasse que é tanto jurídico quanto simbólico. A multiplicação de distritos interessados em emancipação revela o quanto a descentralização administrativa e o sentimento de identidade local ainda moldam o mapa político de um estado historicamente marcado pela busca de autonomia.