
No quintal de muitas casas nordestinas, crescem em silêncio as respostas que não cabem nas prateleiras dos supermercados. Enquanto o preço do arroz, do feijão, do tomate e de tantos outros alimentos do dia a dia dança conforme os gráficos da economia global, ali, no chão fértil dos nove estados do Nordeste, brotam folhas, frutos e raízes que parecem não ligar para a lógica do capital. São as PANCs — Plantas Alimentícias Não Convencionais — tão antigas quanto esquecidas, tão fartas quanto subestimadas.
Desde os anos 2000, pesquisadores e ativistas vêm apontando o papel fundamental dessas plantas na segurança alimentar, sobretudo em tempos de crise climática e inflação dos alimentos. No Nordeste, esse debate ganha ainda mais força — e um certo tom de esperança. Com uma diversidade que desafia qualquer cardápio gourmet, as PANCs oferecem sabores, texturas e preparos que encantam, nutrem e sustentam.
Mais do que comida no prato, elas representam cultura viva, economia criativa e, por que não, um caminho para mais justiça social. Porque ali, onde o mato cresce, também floresce uma nova forma de se alimentar — e de existir.
Do saber popular ao campo comercial
O agrônomo, agricultor e pesquisador da Embrapa Hortaliças, Nuno Madeira, tem se dedicado a rastrear e valorizar essas espécies nascidas do saber popular. E fala delas com o entusiasmo de quem colhe e prova cada uma. “O cuxá e a vinagreira no Maranhão; na Bahia, o feijão mangalô e o maxixe do reino, que em algumas regiões já são bem comuns. A araruta também é destaque por lá — com ela, dá pra fazer mingau, biscoitos, sequilhos, amanteigados…é uma delícia. Já na Zona da Mata de Alagoas e Pernambuco tem a língua de vaca, bastante comum na época de Páscoa”, enumera com familiaridade.
Não se trata apenas de memória afetiva ou nostalgia rural. Há robustez nutricional e viabilidade econômica comprovadas. Nuno conta que o maxixe do reino já aparece em lavouras comerciais na Bahia. “Na Bahia eu já vi reportagem de lavouras de 3 hectares, lavoura comercial, com parreira, formando parreira de chuchu”, lembra.
Mas, para além do solo fértil e da adaptação climática, o principal entrave ainda está fora da terra. “A comercialização dessas espécies sempre encontra barreiras. Muitas vezes, a intenção do mercado é que se cultivem espécies que precisam de muitos insumos […] porque isso aumenta as vendas das revendas, das agropecuárias”, considera. Em outras palavras: há um sistema que favorece o que é escasso, dependente, caro.
Por isso, para o pesquisador, alternativas como feiras agroecológicas, cestas comunitárias e sistemas de CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura) são mais do que válvulas de escape — são caminhos para um novo modelo alimentar. “Onde houver iniciativa de quintais produtivos, agricultura urbana, hortas escolares, hortas domésticas, esse diálogo vai ser muito mais fácil de avançar”, diz.
Comida é cultura, até esbarrar na burocracia…
A relação entre cultura e comida atravessa todo o discurso de Nuno Madeira. “No sentido nutricional e culinário, fantástico. Potencial culinário espetacular. Muitos representam até um festival, representam uma cultura, como o jambu […] utilizado para dar aquele efeito inebriante, meio anestésico, meio trimilique, como se fala”, descreve.
Ele também cita a riqueza genética do grupo dos inhames (carás), a presença da bertalha e da beldroega como hortaliças promissoras e o valor das folhosas perenes como a taioba, a ora-pro-nóbis e a moringa. Sobre esta última, ele dispara: “A moringa, que inclusive está proibida no Brasil. A Anvisa está proibindo integralmente, o que é um absurdo, é a planta mais usada para combate à desnutrição no planeta”.
Ele relata que instituições e pesquisadores já tentaram reverter essa decisão, apresentando dados técnicos e apoio de especialistas, mas sem sucesso. Nuno critica a incoerência na exigência de comprovação para alimentos tradicionais, lembrando que outras hortaliças foram incorporadas sem o mesmo rigor.
“Falaram que não havia comprovação de que era saudável. Quando entrou a rúcula, o espinafre e tal, nunca ninguém falou nada. Você tem que me comprovar que aquele alimento faz mal pra saúde. Ele só foi comido cru, e não se come moringa crua. É a mesma coisa que comer batata crua, vai dar dor de barriga”.
A pílula ou a planta?
Na contramão das promessas industrializadas que vêm em cápsulas, Nuno vê no mato comestível uma solução mais barata, segura e enraizada. “Ao invés de estar tomando cápsula de ômega 3, comer beldroega. Ao invés de cápsula de selênio, consumir cariru ou joão gomes. Luteína na capuchinha”, recomenda.
A capuchinha é uma planta ornamental. Nuno diz que não só a flor pode ser consumida como também a folha, que tem gosto semelhante ao de agrião.
Esse conhecimento, muitas vezes, está vivo nas práticas de agricultores e agricultoras, mas segue invisibilizado pelos circuitos oficiais. “Sempre trazer a experiência de agricultores, de regiões onde alguma determinada espécie já é comum […]”. Além disso, ele destaca a importância de tornar o consumo dessas plantas mais acessível em todos os locais e períodos do ano. “A língua de vaca no Nordeste só na semana da Páscoa. Por que só na semana da Páscoa? É tão saboroso ali, por que não é mais comum ao longo do ano?”, questiona.
Da Serra Mineira à cozinha alagoana: um chef que planta ideias
André Generoso é engenheiro florestal de formação, mas trocou o diploma pela paixão pela cozinha. Deixou sua terra natal e levou na bagagem as memórias culinárias da infância nas fazendas da Serra Mineira. Em Maceió, fundou o restaurante Divina Gula — e desde então, se dedica a aprender e a repassar esse conhecimento, sempre com um olhar atento à biodiversidade brasileira.
Ele acredita que as PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) são uma alternativa viável e poderosa diante dos desafios alimentares do país. “Elas podem suprir essa carência enorme de alimentação, principalmente na região da Caatinga e nas grandes cidades, onde muita gente enfrenta problemas de renda”, afirma.
Generoso destaca que muitas dessas plantas estão ao alcance de todos, inclusive nas calçadas, e que seu cultivo exige pouco. “Você pode viajar e a planta continua ali. Elas nascem sozinhas, têm alto valor nutricional e crescem até na calçada de casa”.
PANCs na prática: memória, educação e mudança de hábitos
A defesa das PANCs vai além do discurso: o chef já participou de ações diretas em comunidades carentes. “Fiz um trabalho indo a assentamentos religiosos, cozinhando, divulgando as propriedades da planta e mostrando que ela pode fazer parte do dia a dia das famílias carentes”.
Mas ele reconhece que o uso dessas plantas ainda é restrito e muitas vezes preso a tradições culturais pontuais. “A beldroega, por exemplo, é comida só na Semana Santa, mas é uma planta que pode ser consumida o ano todo, com várias propriedades nutricionais”.
Nesse sentido, os cozinheiros e chefs têm um papel crucial na popularização dessas espécies “Acredito que os chefs nos restaurantes têm que divulgar mais. Já faço esse trabalho, apresentando receitas e incentivando o uso”, ressalta Generoso.
Para ele, o impacto mais profundo vem quando o consumo das PANCs se transforma em hábito e parte da memória afetiva das pessoas. “É um trabalho de formiguinha. Se a pessoa cresce comendo essas plantas, leva esse hábito para o resto da vida”.
Por fim, Generoso destaca o principal desafio: mudar a percepção do que é, de fato, alimento.
“É um trabalho de divulgação, de cada um fazer sua parte para que a população entenda que comida não é só aquilo que tem no mercado. São praticamente todas frutas e verduras europeias, e nós temos muita coisa nativa, boa, que não precisa de tanto cultivo, de tanto gasto, até pelo lado orgânico, sem defensivos. É alimento de primeira qualidade, mas tratado como mato”.
Cultivo de futuro
Na ponta do lápis, as PANCs são mais baratas, mais fáceis de cultivar e mais adaptadas às mudanças climáticas. “Servem de mais alternativas para um comércio mais justo, mais direto, com alimento de verdade, mais fácil de produzir, menos gasto para produzir”, diz o pesquisador.
Ele aponta que o uso dessas hortaliças em hortas escolares e domésticas pode ser mais eficaz do que depender de sementes comerciais, que muitas vezes inviabilizam projetos quando o recurso se esgota. “Quando acaba a semente, acaba o recurso […] Enquanto com essas espécies fica muito mais fácil conduzir o trabalho”, reforça
Para Nuno, há ainda mais soluções possíveis. Uma ideia simples, mas poderosa: “Uma campanha de um pé de moringa, de chaya e de ora-pro-nóbis por família, alguma coisa nesse sentido. Seria muito interessante também entrar com essas espécies mais resilientes, mais adaptadas, menos demandantes em insumos”.
O que ele propõe é mais do que plantar espécies: semear autonomia, comida de verdade e reconexão com a terra. Num tempo de tanta escassez programada, o mato comestível pode ser, mais uma vez, o caminho do futuro — desde que a gente volte a ouvir quem sempre soube onde ele brota.
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