A COP30, que será realizada em Belém, chega em um momento decisivo para o planeta, mas tende, por natureza, a repetir pautas de edições anteriores. Desde a primeira conferência, em 1995, o evento acumula lacunas históricas. Mesmo após o Acordo de Paris, firmado na COP21, em 2015, a implementação de medidas concretas ainda é incerta, sobretudo no que se refere à eliminação dos combustíveis fósseis e a agenda social.
Os principais – carvão mineral, petróleo e gás natural – seguem sendo discutidos, mas raramente com metas claras. Ao ser sediada na Amazônia, a conferência oferece ao Brasil a chance de mudar esse cenário, e o Nordeste pode se colocar à frente da discussão com o financiamento de soluções para a transição energética.
A região já lidera o setor renovável brasileiro: abriga cerca de 90% da capacidade instalada em energia eólica e concentra também grandes investimentos em energia solar. Essa vocação natural atrai capital estrangeiro e posiciona o Nordeste como protagonista da produção de hidrogênio verde (H2V), considerado o combustível do futuro.
Projetos no Ceará, Pernambuco e Bahia reforçam essa perspectiva. O Complexo do Pecém, no Ceará, abriga o primeiro hub de H2V do país e já assinou mais de dez memorandos de entendimento para exportação do insumo à Europa. Pernambuco aposta no Porto de Suape, em parceria com empresas globais, enquanto a Bahia utiliza sua infraestrutura portuária e o Polo Industrial de Camaçari para atrair empreendimentos.
O potencial é evidente. Segundo a Agência Internacional de Energia, até 2050, 62% da produção mundial de hidrogênio poderá vir dessa modalidade limpa. O Goldman Sachs estima que o mercado global pode movimentar US$ 11 trilhões até meados do século.
Para Mikaelle Farias, ativista climática e estudante de engenharia de energias renováveis, a força do Nordeste vai além dos recursos naturais. “Temos uma das maiores incidências solares da América Latina, além de ventos constantes e fortes em áreas como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará. Mas o governo brasileiro e o capital estrangeiro precisam valorizar mais o semiárido nordestino. Acredito que ele pode se tornar um espaço de soluções climáticas muito importante para o país, porém ainda pouco desenvolvido em termos de políticas públicas.”
Ela destaca ainda que o hidrogênio verde pode ser um diferencial. “Diferente de outras matrizes, ele pode ser um facilitador no transporte e no armazenamento, ajudando a estabilidade do sistema. Se feito com responsabilidade, respeitando os territórios e as comunidades, pode evitar impactos ambientais já causados por fontes como as hidrelétricas.”
Mikaelle também ressalta que o desenvolvimento social precisa caminhar junto com os projetos. “A transição só será justa se garantir formação técnica e científica às juventudes, apoiar cooperativas e fortalecer a mão de obra local. É fundamental criar mecanismos de participação social desde o início. Só assim evitaremos que esse processo reproduza desigualdades históricas.”
Apesar da urgência climática, não há um item específico na agenda da ONU para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. O compromisso só entrou nas negociações em 2023, na COP28, por meio do Balanço Global – documento que traça os passos para cumprir o Acordo de Paris, mas sem metas claras sobre produção e consumo de petróleo, gás e carvão.
No Brasil, algumas iniciativas tentam preencher esse vazio. O Plano de Descarbonização de Pernambuco (PDPE), por exemplo, projeta reduzir emissões em 32% até 2035 e alcançar neutralidade climática em 2050, associando medidas de baixo carbono à geração de emprego e crescimento econômico.
Já a corrida pelo hidrogênio verde, embora promissora, não tem sido acompanhada de debates públicos sobre seus impactos sociais e ambientais. A produção em larga escala demanda grandes volumes de energia e água — um desafio em uma região que ainda convive com desigualdades de acesso. Para Mikaelle, o risco é repetir lógicas coloniais. “O hidrogênio verde pode ser uma oportunidade para o Nordeste, mas, se for pensado apenas para exportação e lucro das grandes empresas, não será justo. É preciso colocar as comunidades no centro.”
Mulheres negras à frente da transição
A discussão sobre transição justa, introduzida na COP27, surgiu para garantir que a saída da economia fóssil não deixasse para trás trabalhadores formais e informais. Com o tempo, o conceito se ampliou para incluir a participação de povos indígenas, migrantes, jovens e outros grupos historicamente marginalizados.
Na COP28 e na COP29, o tema pouco avançou, mas, em junho, durante as negociações em Bonn, o rascunho enviado para Belém incluiu um marco inédito: a menção explícita a afrodescendentes como grupo prioritário na transição justa. A medida atende a uma demanda antiga de organizações negras que alertam para o racismo ambiental e a urgência de uma agenda que não apenas reduza emissões, mas também combata desigualdades.
Esse debate é central porque os efeitos da crise não são iguais para todos. Atos extremos como enchentes, secas, deslizamentos e ondas de calor atingem de forma desproporcional mulheres, negras e negros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e populações periféricas. No Nordeste, onde 13% da população negra do país está concentrada, essas desigualdades se acentuam: falta de saneamento básico, moradia precária e baixa renda aumentam a vulnerabilidade das famílias diante de cada desastre.
Mulheres negras, em especial, estão na linha de frente desse impacto. Muitas são chefes de família, provedoras e cuidadoras, o que as torna ainda mais expostas à insegurança alimentar e hídrica. Apesar disso, seguem pouco representadas nos espaços de decisão política — o que dificulta a formulação de políticas públicas capazes de responder a essa realidade.
Mesmo diante dessas barreiras, o Nordeste tem avançado no debate e conta com programas de financiamento e capacitação que fortalecem esse protagonismo. O Programa Zunne, voltado para o Norte e o Nordeste, oferece crédito com condições especiais a empreendedores sociais, priorizando mulheres negras e indígenas. Criado no modelo de blended finance, mistura doações e investimentos privados para reduzir desigualdades e democratizar o acesso a recursos.
Já o Fundo Baobá para Equidade Racial concentra-se no fortalecimento da liderança de mulheres negras. Com apoio de fundações internacionais, investe em formações políticas e técnicas, oficinas de enfrentamento ao racismo e acompanhamento de lideranças. Também financia projetos coletivos em agroecologia, energia renovável e economia circular, colocando essas mulheres no centro das soluções climáticas.
Essas iniciativas mostram que o combate à crise climática passa necessariamente pela reparação histórica. Reconhecer e investir em mulheres negras não é apenas uma questão de justiça, mas também uma estratégia eficaz de adaptação e mitigação. Nesse contexto, a discussão se amplia ao sediar a COP em uma região que tem se dedicado a aprimorar oportunidades para mulheres negras por meio de programas de financiamento.
Esse texto integra a série especial de reportagens do Investindo Por Aí sobre a COP30.