
A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) concedeu a Licença de Instalação da Dessal do Ceará, o que representa um avanço no projeto da primeira usina de dessalinização de grande porte da América Latina. Localizada na Praia do Futuro, em Fortaleza, a planta terá capacidade para produzir 1 metro cúbico (m³) de água potável por segundo, o que representa um aumento de 12% no abastecimento da Região Metropolitana.
Com investimentos estimados em R$3,2 bilhões por meio de parceria público-privada (PPP), o empreendimento é liderado pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e integra o consórcio SPE Águas de Fortaleza, vencedor do edital de concessão. O objetivo é reduzir a dependência dos reservatórios hídricos e mitigar os efeitos das secas recorrentes no Nordeste.
Em nota ao Investindo Por Aí, a Semace confirmou a concessão após análise técnica detalhada do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), elaborados conforme termo de referência da própria autarquia. “O estudo avaliou aspectos físicos, bióticos e socioeconômicos da área de influência do empreendimento”, afirmam.
A emissão da licença encerra um dos principais entraves do projeto. Inicialmente prevista para ser instalada em uma área próxima aos cabos submarinos de fibra óptica que conectam o Brasil aos demais territórios da América Latina e à Europa, a usina enfrentou forte resistência de empresas de telecomunicações, que alertavam para o risco de danos à infraestrutura de internet do país.
Diante das pressões, o Governo do Ceará alterou o local de construção, mantendo a usina na Praia do Futuro, mas a mais de 1.000 metros da área original. A realocação também deslocou a estrutura de captação da água do mar, eliminando, segundo a Anatel, qualquer possibilidade de interferência nos cabos.
Próximos passos e licenças pendentes
Com a licença ambiental em mãos, o projeto aguarda agora o alvará de construção da Prefeitura de Fortaleza, além da autorização da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) para instalação dos dutos na faixa de praia, que é uma área de domínio da União.
A expectativa da Cagece é iniciar as obras ainda em 2025, com prazo de execução de dois anos. O empreendimento será operado pela Águas de Fortaleza S/A, vinculada à estatal cearense.
O coordenador do projeto da Dessal do Ceará, Silvano Porto, explica que a companhia estruturou uma parceria público-privada (PPP) que abrange todas as fases do empreendimento — desde a elaboração de projetos e licenciamento ambiental até o financiamento, construção e operação da usina.
Segundo ele, a Cagece é responsável pela remuneração da Sociedade de Propósito Específico (SPE Águas de Fortaleza), de acordo com os volumes de água solicitados e indicadores de desempenho definidos em contrato. “Os volumes de água produzidos pela SPE serão distribuídos pela Cagece a seus usuários por meio do Macrossistema Integrado de Água de Fortaleza atualmente existente e operado pela Cagece”, afirma.
O coordenador destaca ainda que o projeto integra uma estratégia de diversificação da matriz hídrica do estado, voltada a reduzir a dependência dos reservatórios e ampliar a resiliência do sistema de abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). “Cerca de 720 mil pessoas serão diretamente beneficiadas”, garante Porto.

Projeto bilionário acumulou atrasos desde 2017
Anunciada em 2017, a usina passou por sucessivos atrasos decorrentes de disputas técnicas e ambientais. A ordem de construção foi assinada apenas em 2021, e a previsão inicial de funcionamento — marcada para 2025 — deve ser novamente postergada.
O Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema) aprovou o licenciamento prévio em 2022, e em 2023 a SPU deu aval para obras na faixa de praia. A licença de instalação da Semace, porém, só foi emitida em setembro de 2025, quase um ano após o prazo previsto.
Segundo a Semace, o processo incluiu audiência pública realizada em Fortaleza, em agosto de 2023, e foi aprovado pelo Coema, conforme Resolução nº 09/2023. A licença emitida abrange as estruturas terrestres da usina, localizadas na Praia do Futuro, e foi fundamentada em pareceres técnicos multidisciplinares da autarquia.
“A análise considerou a viabilidade ambiental do projeto, o atendimento às normas legais e a eficácia das medidas de controle e mitigação previstas. Também foram observadas as exigências da Prefeitura de Fortaleza, com a emissão de Certidão de Anuência pela Seuma, que confirmou a compatibilidade urbanística e ambiental do projeto”, detalha.
A Superintendência explica que, por se tratar de uma estrutura voltada ao abastecimento público, a usina é considerada de utilidade pública, conforme o Código Florestal. “O projeto inclui ainda um Museu da Água, voltado à educação ambiental e à valorização do uso racional dos recursos hídricos”, coloca.
Funcionamento da usina
A Dessal do Ceará utilizará a tecnologia de osmose reversa — método em que a água do mar é filtrada sob alta pressão, separando o sal das moléculas de água. O processo envolve três etapas principais:
- Pré-tratamento: filtragem inicial da água do mar;
- Osmose reversa: passagem da água por membranas que retém os sais;
- Pós-tratamento: adição de minerais e correção de pH para consumo humano.
De cada 2,3 mil litros captados, cerca de mil litros se tornam potáveis. A água será direcionada ao sistema de abastecimento da Cagece, reforçando o fornecimento à capital e municípios vizinhos.
O coordenador do projeto, Silvano Porto, explica que a usina permitirá uma substituição de cerca de 12% da água atualmente utilizada na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) por uma fonte de origem marinha. “A Dessal do Ceará também vai reduzir a necessidade de transferência de água do interior do Estado para a RMF, onde está localizada a maior parcela da população cearense, contribuindo assim com a oferta de água de municípios fora da própria RMF”, afirma.
A avaliação é compartilhada por Francisco Teixeira, presidente da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH), que destaca a importância do projeto no contexto da política estadual de recursos hídricos. Segundo ele, o Ceará viveu a maior seca de sua história recente, o que levou à necessidade de uma mudança estrutural na gestão das águas.
“Passamos por uma seca de seis anos em algumas regiões — na Região Metropolitana de Fortaleza, de 2012 até 2017 ou 2018. Em algumas regiões do interior do Estado, chegou a oito ou até dez anos, como no Sertão Central. Então, foi a seca mais longa e mais severa da nossa história”.
Teixeira lembra que o Ceará avançou em sua política de gestão hídrica, cuja base remonta a 1957, embora já existissem ações anteriores, em nível federal. Apesar da ampla infraestrutura instalada, o Estado identificou a necessidade de diversificar a matriz hídrica, em linha com o que já ocorre no setor elétrico.
“No setor elétrico, você gera energia em hidrelétricas, mas também em usinas solares e eólicas. Todas são interligadas num sistema unificado. A ideia é que, na água, se siga um caminho semelhante”, diz o especialista.
A Dessal do Ceará surge, portanto, como mais uma fonte estratégica para garantir o abastecimento da RMF, que já conta com uma dezena de reservatórios interligados, poços subterrâneos e, mais recentemente, iniciativas de reuso de água.
“A dessalinização da água do mar vem como mais uma fonte, contribuindo para diversificar a matriz hídrica e dar maior segurança hídrica. Foi nessa visão que se buscou a construção da planta”, destaca.

Impactos econômicos e ambientais
O presidente da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), Francisco Teixeira, ressalta que o projeto traz novos desafios técnicos e ambientais, por se tratar da primeira planta de dessalinização em larga escala do Brasil.
“Embora já tenhamos experiência com dessalinização em menor escala — no interior do Estado, por exemplo, onde muitos poços têm água salobra e são dessalinizados —, uma planta desse porte é inédita. E isso traz desafios”, afirma.
Com capacidade de produção de 1 m³ por segundo, a usina representará cerca de 12% da demanda hídrica de Fortaleza, estimada em 10 m³ por segundo. O impacto, explica Teixeira, vai além da capital.
“Mesmo com esses 12% de contribuição, a dessalinização impacta positivamente os nossos reservatórios. Porque hoje temos um grupo de quatro ou cinco reservatórios que atendem a Região Metropolitana de Fortaleza. Quando é necessário, trazemos água do sertão, da região mais seca, onde estão os grandes rios — como o Jaguaribe — e o Açude Castanhão, que é o segundo maior do Brasil. Quando a situação aperta, trazemos água do São Francisco, pela transposição. Mas, no momento em que eu passo a usar a água dessalinizada, injetando 1 m³ por segundo na Região Metropolitana, eu deixo de precisar trazer esse mesmo volume do sertão, principalmente em períodos de seca extrema”, esclarece.
Segundo Teixeira, a economia de água no interior tem efeitos diretos sobre o desenvolvimento regional.
“A água que fica no sertão pode ser usada para o desenvolvimento local — para a atividade rural, para aumentar a produção. Em vez de mandar 1 m³ para Fortaleza, vindo do interior, Fortaleza usa 1 m³ vindo da planta de dessalinização, que está ali, praticamente na porta da cidade. Esse 1 m³ que deixa de sair do sertão pode irrigar de 1.500 a 2.000 hectares, dependendo da cultura. Isso gera emprego, renda e desenvolvimento no interior”, observa.

“Ou seja: a água que antes vinha para Fortaleza continua sendo fundamental para garantir o abastecimento, mas, quando usamos a água do mar dessalinizada, aquela que ficaria comprometida com a transposição permanece nas bacias do interior, gerando desenvolvimento econômico e social na região”, conclui Teixeira.
Além de ampliar a segurança hídrica, o projeto deve impulsionar a cadeia de infraestrutura local, com geração de empregos tanto durante as obras quanto na operação da planta. A Dessal do Ceará também reacende debates sobre gestão ambiental, especialmente em relação ao descarte da salmoura, subproduto do processo de dessalinização.
O coordenador do projeto, Silvano Porto, relembra que uma série de estudos foi conduzida antes da fase de contratação para definir a tecnologia e a localização ideais da usina. Essas análises serviram de base para a elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), necessários à obtenção das licenças prévia e de instalação pela SPE.
“Para isso foram necessárias campanhas para levantamentos de dados relacionados à hidrodinâmica e batimetria da área, biologia marinha, meteorologia, topografia e geotecnia, além de simulações computacionais, executados por empresas e universidades durante mais de dois anos”, aponta o coordenador.
De acordo com ele, essas informações fundamentaram o detalhamento dos projetos e as medidas mitigadoras exigidas pelos órgãos ambientais. Porto reforça que o diálogo com as comunidades vizinhas foi essencial para garantir transparência.
“Portanto, o desafio foi tanto técnico e ambiental quanto social, exigindo cooperação, transparência e inovação para garantir que todas as etapas fossem cumpridas com responsabilidade e sustentabilidade”, diz.
Inspirada em modelos de Israel e da Holanda, a usina é considerada uma solução estrutural para enfrentar as variações climáticas e a escassez de água no semiárido. Caso o cronograma seja mantido, a Dessal do Ceará poderá marcar uma mudança de paradigma na gestão hídrica do Nordeste.
A Semace reforça que o licenciamento ambiental da usina contempla 27 Planos e Programas Ambientais voltados à prevenção, controle e monitoramento de impactos nas fases de instalação e operação. Entre eles, estão o Programa de Gerenciamento de Efluentes Líquidos, o Monitoramento da Qualidade da Água do Mar, o Monitoramento da Biota Marinha, da Dinâmica Costeira e das Condições do Solo Marinho, além do Plano de Proteção às Tartarugas.
“Esses instrumentos garantem o acompanhamento técnico da qualidade da água, da integridade do ecossistema marinho e do comportamento da pluma de salmoura. Os dados coletados serão avaliados periodicamente pela Semace, que poderá determinar medidas corretivas, caso necessário”, afirma a instituição.
Também foram definidas ações de proteção da fauna, com monitoramento de ninhos de tartarugas e aves migratórias, em parceria com o Instituto Verde Luz, o ICMBio e organizações não governamentais.
A Superintendência acrescenta que, após a conclusão das obras, a empresa responsável deverá solicitar à Semace a Licença de Operação, que autoriza o início das atividades da usina. Para obtê-la, será necessário comprovar o cumprimento de todas as condicionantes estabelecidas na Licença de Instalação.
Durante a operação, a companhia deverá enviar relatórios semestrais sobre a execução dos programas ambientais, além de um Relatório Anual de Avaliação e Monitoramento Ambiental (Rama).
“A Semace fará o acompanhamento técnico por meio da análise desses relatórios e de vistorias in loco, garantindo que todas as medidas de controle e mitigação de impactos sejam executadas conforme a legislação ambiental vigente”, declara em nota.