Todas as manhãs, quando Maurício José da Silva acordava, o cheiro de milho cozido no vapor preenchia a casa simples onde cresceu, no interior de Pernambuco. Seu estômago, ainda preguiçoso do sono, reconhecia aquele aroma como sinal de que o dia começava com a força de sempre. A mãe, com mãos ágeis e experientes, preparava o cuscuz, uma massa de milho fresca colhida da roça. O fogo de lenha, a água que fervia na panela de ferro, e o som suave da cuscuzeira, aquela panela especial que liberava o vapor da água para cozinhar o cuscuz, eram a sinfonia cotidiana que Maurício conhecia tão bem. A cada manhã, o cuscuz com leite, com manteiga, ou, nos dias mais especiais, com carne de sol, se apresentava como um prato simples, mas com uma força que o sustentava por horas.
“Minha mãe, para fazer o cuscuz, ela colhia as espigas de milho na roça, então era tudo muito fresquinho. E os ingredientes ela não costumava colocar, só mesmo sal, mas se quisesse colocar alguns ingredientes, podia colocar. É muito gostoso o cuscuz feito com milho colhido na roça”, conta Maurício, lembrando com carinho da simplicidade da rotina familiar.
O cuscuz não era apenas comida: era um elo, uma tradição que se passava de geração em geração, mantendo todos à mesa, unidos por um prato simples, mas profundo. “Agora que moro em São Paulo, eu como cuscuz ainda, gosto muito, mas não é mais cuscuz com o mesmo sabor do que mamãe fazia. Mas eu adoro, adoro cuscuz”, diz ele, com um sorriso nostálgico. O sabor de sua infância permanece com ele, como uma memória que atravessa o tempo e o espaço, mesmo quando o cuscuz que ele come agora já não carrega o mesmo frescor.
Sinônimo de sustento
O cuscuz, um prato tradicionalmente africano, chegou ao Brasil por meio dos portugueses, que o adaptaram ao milho, ingrediente abundante no país. No Nordeste, ele ganhou um papel fundamental na alimentação, sendo um dos pilares da culinária local. Feito de farinha de milho pilada e cozido no vapor, o cuscuz é versátil, podendo ser servido com leite, manteiga, carne de sol, ou até mesmo com ingredientes mais elaborados, como o queijo coalho ou legumes.
Em cada região, o prato se transforma, mas sua essência permanece, oferecendo sustância e aconchego. A sua importância vai além da cozinha: o cuscuz é um símbolo de resistência e adaptação, especialmente no Nordeste, onde o prato evoluiu para se tornar uma iguaria cotidiana, capaz de alimentar famílias inteiras com um custo acessível. A farinha de milho, base para o cuscuz, continua a ser um alimento barato e nutritivo, essencial para garantir a segurança alimentar de muitas famílias.
Cuscuz como ativo econômico
Mais do que um prato tradicional, o cuscuz representa uma resposta econômica inteligente. A produção de milho no Nordeste, essencial para sua confecção, tem alcançado níveis expressivos. Em 2023, lavouras participantes do Prospera — programa de incentivo agrícola — registraram uma produtividade média de 124,4 sacas por hectare, superando em mais de duas vezes a média regional, segundo a Conab.
O avanço técnico no cultivo fortalece a economia local e reposiciona o milho nordestino no cenário global. Países como Argélia, Colômbia e Coreia do Sul tornaram-se compradores recorrentes, sinal de que o campo do Nordeste está cada vez mais integrado ao comércio internacional.
O cuscuz, ao ser preparado em grande escala e presente em tantas mesas, consolida-se como um alimento acessível e estratégico na dieta nacional.
Tradição que se cozinha no vapor
Graça da Silva acordava todos os dias com um pensamento claro: o que poderia fazer para alimentar tantas crianças com um orçamento apertado? Durante os dez anos em que trabalhou como cozinheira em escolas públicas, ela encontrou no cuscuz uma solução econômica e deliciosa. “A combinação era sempre variada: cuscuz com leite, cuscuz com carne de sol, cuscuz com feijão. O importante era garantir que, mesmo sendo simples, a comida fosse nutritiva e satisfatória”, conta Graça.
Ela sabia que o cuscuz era uma escolha inteligente, tanto pelo preço quanto pela capacidade de alimentar bem as crianças durante todo o dia escolar. Na escola, o cuscuz era sempre bem aceito. As crianças, acostumadas com pratos simples e saborosos, viam naquele alimento um conforto e um sustento diário. Para Graça, cozinhar era uma arte que também passava pela economia. “Fazer cuscuz na cantina era sempre uma forma de ajudar a escola a economizar, sem abrir mão da qualidade. O cuscuz é barato, e você pode enriquecer ele com o que tem: leite, manteiga, legumes, carne… era só usar a criatividade”, lembra com carinho.
Milho em números
Principal matéria-prima do cuscuz, o milho é a segunda maior cultura agrícola do Brasil e tem papel essencial na economia nordestina. Estados como Bahia, Maranhão e Piauí se destacam na produção, contribuindo para o abastecimento interno e o fortalecimento das exportações. De acordo com a Conab, a produtividade média no Nordeste alcançou 52,6 sacas por hectare em 2023, e segue crescendo de forma constante.
Esse avanço reforça a presença do cuscuz não só como herança cultural, mas como reflexo de um território que transforma tradição em potência econômica.
A cara do cuscuz nas metrópoles
O cuscuz não é apenas uma iguaria regional: ele carrega a cultura nordestina por onde passa. Em São Paulo, o restaurante Cuscuzlícia – Sabores do Nordeste tem se destacado por trazer o cuscuz para a cidade de uma maneira inovadora, mantendo sua essência simples, mas saborosa. Com pratos que combinam o cuscuz com ingredientes típicos da região, como carne de sol, queijo coalho e feijão verde, o restaurante se tornou um ponto de encontro para quem deseja experimentar a verdadeira culinária nordestina. O cuscuz, preparado com leite de coco, é um dos pratos mais pedidos, representando a cultura e o sabor do Nordeste.
Irina Câmara Cordeiro, ex-Masterchef e chef do restaurante Cuscuz da Irina, também traz o cuscuz para a metrópole de forma única. No seu restaurante, localizado na Vila Madalena, ela prepara o cuscuz de maneira sertaneja, macio e soltinho, hidratado com manteiga de garrafa. Em seu cardápio, ele se apresenta em diferentes combinações, como o “ralabucho” com creme de galinha e feijão-fradinho, e o “praieiro”, com peixe frito no dendê e coco crocante. O cuscuz da Irina é um exemplo perfeito de como a gastronomia nordestina tem se adaptado às grandes cidades, movimentando a cultura e a economia ao redor desse prato tão simples, mas tão significativo.