O Brasil é um país de dimensões continentais, com uma área de aproximadamente 8,5 milhões de km² e 5.570 municípios, segundo o IBGE. A diversidade de contextos regionais e tamanhos das cidades torna o planejamento urbano eficiente e inclusivo um grande desafio. Para enfrentar essa complexidade, foi criado o Estatuto da Cidade, estabelecido pela Lei nº 10.257, de 2001, com o objetivo de regulamentar a política de desenvolvimento urbano e definir normas para o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental.
A relação entre planejamento urbano e mobilidade urbana é um fator determinante para garantir deslocamentos eficientes nas cidades. Para a professora do Centro de Tecnologia (Ctec) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e especialista em mobilidade urbana, Jéssica Lima, a falta de integração entre o plano diretor e o plano de mobilidade compromete o tempo de deslocamento da população. “A mobilidade urbana depende muito do uso do solo. Ou seja, o plano diretor e o plano de mobilidade precisam andar juntos”, afirma.
Crescimento desordenado e seus impactos na infraestrutura
A ausência de um plano diretor e de um plano de mobilidade urbana resulta no crescimento desordenado das cidades, afetando diretamente a infraestrutura de transporte. “Isso faz com que muitas vezes as áreas onde as pessoas acabam indo morar sejam desprovidas de infraestrutura urbana, incluindo transporte. E ao fazer isso de forma não planejada, você acaba dificultando depois o próprio funcionamento do sistema de transporte, porque ele precisa de alguns parâmetros, e o principal deles é a densidade urbana”, explica Jéssica.
Ela destaca que, sem um plano diretor que delimite as áreas de crescimento da cidade, ocorre uma dispersão desordenada da população, tornando o transporte público ineficiente e caro. “Se você não tem um plano que determina para onde a cidade deve crescer e quais áreas ainda não devem ser ocupadas, as pessoas vão se espalhando pelo território de forma desordenada. Isso impacta o sistema de transporte público, tornando-o ineficaz, caro e ineficiente”, alerta.
Cerca de 89,7% das cidades brasileiras com mais de 20 mil habitantes possuem planos diretores para orientar o desenvolvimento territorial. O Nordeste é a segunda região do Brasil com maiores áreas urbanizadas e adensamento, ficando atrás apenas do Sudeste. No entanto, é a região com o maior percentual de municípios com mais de 20 mil habitantes sem plano diretor, alcançando 18,8%.
Percentual de municípios com mais de 20 mil habitantes que possuem plano diretor, por região (%)
Esses planos servem de base para os planos municipais de mobilidade urbana, que devem seguir as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU), instituída pela Lei nº 12.587, de 2012. Essa política tem como objetivo integrar diferentes meios de transporte e melhorar a acessibilidade e a mobilidade de pessoas e cargas.
Suas principais premissas incluem:
- Integração com políticas de desenvolvimento urbano, habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo;
- Prioridade dos meios de transporte não motorizados sobre motorizados e transporte público coletivo sobre transporte individual;
- Integração entre meios e serviços de transporte urbano;
- Mitigação de custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos, priorizando projetos de transporte coletivo estruturadores e indutores do desenvolvimento urbano integrado.
Além do planejamento urbano, é fundamental garantir um transporte público eficiente. Medidas como faixas exclusivas, corredores de ônibus e sistemas de metrô podem contribuir significativamente para essa melhoria. Segundo Jéssica, esses avanços podem ser impulsionados por instrumentos já previstos na legislação.
“A própria PNMU já prevê instrumentos importantes, como restrição e controle de acesso à circulação, padrões de emissão, aplicação de tributos pela utilização da infraestrutura urbana – o chamado pedágio urbano –, além da destinação de espaços exclusivos nas vias para o transporte público. Todos esses instrumentos são aplicáveis, o que falta é conseguirmos implantá-los”, afirma.
O professor doutor da Universidade Federal de Pernambuco e da Technical University Nord Rein Westfalene, especialista em Planejamento de Transportes, Oswaldo Lima Neto, enfatiza a necessidade de maior reconhecimento, por parte do poder público, da importância do transporte coletivo. “A coisa mais importante, no início, é que o poder público, seja municipal, estadual ou federal, reconheça a grande importância do transporte público para a população, para que ela possa acessar suas necessidades. Isso não está sendo atendido”, afirma.
A queda do transporte coletivo e a ascensão dos transportes individuais
Em todo o Brasil, o principal motivo dos deslocamentos é o trabalho (50,8%), segundo o IBGE Pirâmide Etária 2024. O ônibus continua sendo o meio mais utilizado (30,9%), mas sua participação caiu significativamente desde 2017 (45,2%), enquanto o uso de carros e motos próprias aumentou. Aplicativos de transporte também cresceram expressivamente, passando de 1% em 2010 para 11,1% em 2024.
A especialista Jéssica Lima alerta para esse fenômeno. “Os dados mostram que o transporte público vem perdendo passageiros desde os anos 1990. Isso acontece por conta do que chamamos de ciclo vicioso do transporte coletivo”, aponta.
“Quanto mais carros nas vias, mais congestionado fica o trânsito. Sem faixas exclusivas, os ônibus demoram mais, a operação se torna mais cara, o custo aumenta para o usuário, e o sistema se torna menos atrativo. As pessoas acabam migrando para veículos individuais, como motocicletas e aplicativos de transporte”, detalha.
Nordeste enfrenta tempos de deslocamento elevados nas capitais
Os dados confirmam esse impacto. Na região Nordeste, conforme o TomTom 2023, o tempo médio de viagem em algumas das principais capitais nordestinas, para um percurso de 10 km, é: Salvador – 24 minutos (normal) e 41 minutos (congestionamento); Fortaleza – 28 minutos (normal) e 53 minutos (congestionamento); Recife – 27 minutos (normal) e 58 minutos (congestionamento). A capital pernambucana, inclusive, é a cidade brasileira com maior tempo de viagem durante os congestionamentos, superando São Paulo (57 minutos) e Belo Horizonte (57 minutos).
A cada 10 nordestinos que se deslocam para a escola, trabalho ou faculdade, 3 enfrentam mais de uma hora no trânsito diariamente, seja em veículo privado, ônibus, metrô ou van. Dados da Pesquisa Mobilidade Urbana & Trabalho, realizada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e analisada pela Agência Tatu, revelam que 19% da população da região gasta de 1 a 2 horas por dia no trânsito, 5% gasta de 2 a 3 horas e 7% mais de 3 horas. No total, 32% dos nordestinos enfrentam deslocamentos diários superiores a uma hora.
Cidades mais compactas podem reduzir tempo de deslocamento
Para reduzir esses tempos de viagem, é essencial criar oportunidades mais próximas das pessoas. “Dessa forma, elas não precisarão fazer tantos deslocamentos diários com um meio de transporte motorizado”, explica Jéssica. Ela destaca a implementação do conceito de “cidade dos 15 minutos”, onde serviços essenciais ficam acessíveis a pé ou de bicicleta.
“Se próximo à sua casa você tem escola, infraestrutura de saúde, mercados, bancos e outros serviços do dia a dia, a probabilidade de fazer esses deslocamentos a pé ou de bicicleta é muito maior. Já quem mora em áreas apenas residenciais, distantes desses serviços, precisa recorrer a um meio de transporte motorizado. A organização da cidade impacta diretamente no tempo de deslocamento”, acrescenta.
Jéssica também ressalta a necessidade de políticas de estacionamento. “Temos a ideia de que comprar um carro dá o direito de estacionar na rua, quando, na verdade, a rua é coletiva”, argumenta. Além disso, o transporte de carga deve ser regulamentado, pois impacta diretamente a mobilidade urbana.
Modelo de financiamento precisa ser revisto para um transporte público mais eficiente
Para tornar o transporte público mais atrativo, Jéssica defende mudanças no modelo de financiamento. “Nos países que possuem bons sistemas de transporte público, muitas vezes ele é subsidiado, e não pago exclusivamente pelo usuário, como ocorre na maioria das cidades brasileiras. No Brasil, a Constituição já reconhece o transporte como um direito, mas ele não é tratado como outros serviços essenciais, como iluminação pública e coleta de lixo, que são custeados por toda a população”, argumenta.
No início de 2025, diversas capitais nordestinas sofreram reajustes tarifários. Em Natal, a tarifa de ônibus foi reajustada para R$4,90 em 29 de dezembro de 2024, um aumento de 8,8%. Em Recife, a partir de 5 de janeiro de 2025, a passagem do Bilhete Único subiu de R$4,10 para R$4,28 (4,29%). Em Salvador, em 4 de janeiro de 2025, a tarifa de ônibus, amarelinhos e BRT subiu de R$5,20 para R$5,60. Outras capitais nordestinas, como Fortaleza, João Pessoa, Maceió, São Luís e Teresina, ainda não tiveram reajustes tarifários em 2025.
Jéssica defende que o custo do transporte público deveria ser repartido entre todos os cidadãos, pois beneficia toda a sociedade. “Se você reclama do congestionamento quando está de carro, talvez, se ajudasse a financiar o transporte público, mais pessoas o utilizassem e o trânsito fosse menos caótico”, pontua.
Lima Neto complementa que as principais fontes de financiamento vêm do estado e das prefeituras, mas poderiam incluir o setor automotivo. “O automóvel poderia financiar parte do transporte público, com recursos provenientes de impostos como o IPVA. Outros mecanismos, como tarifas sobre estacionamento e propriedades urbanas, também poderiam contribuir”, explica.
O especialista destaca que, em outros países, as empresas também contribuem para o financiamento do transporte público. “Na França, entidades privadas participam ativamente, inclusive financiando o deslocamento de seus funcionários. No Brasil, essa prática ainda é limitada, restrita a iniciativas como a manutenção de abrigos de ônibus”, comenta.
Greves no transporte público marcam 1º trimestre do ano em capitais nordestinas
Nos primeiros meses de 2025, três das nove capitais nordestinas já enfrentaram greves no transporte público, impactando significativamente a mobilidade urbana. A onda de greves no transporte público teve início em 16 de janeiro, quando rodoviários da Região Metropolitana de Salvador aprovaram paralisação por tempo indeterminado a partir do dia 28, reivindicando reajuste salarial e melhores condições de trabalho.
No mesmo mês, em 27 de janeiro, os motoristas de ônibus de João Pessoa também cruzaram os braços, operando com apenas 25% da frota, apesar da determinação judicial que exigia 60%. A categoria exigia aumento de 15% nos salários, retomada do vale-alimentação suspenso desde 2019 e inclusão de planos de saúde e odontológico.
Já em 17 de fevereiro, foi a vez dos rodoviários de São Luís e da região metropolitana iniciarem uma greve geral, afetando cerca de 700 mil usuários. Entre as principais demandas estavam reajustes salariais de 15% a 25%, aumento do ticket de alimentação para valores entre R$1.300 e R$1.500 e seguro em caso de falecimento. Em todas as cidades, as negociações com as empresas de transporte não avançaram, resultando em paralisações sem prazo definido e prejudicando milhares de passageiros.
Essas paralisações evidenciam os desafios enfrentados pelo setor de transporte público na região Nordeste, com trabalhadores buscando melhores condições laborais e empresas alegando dificuldades financeiras, resultando em impactos significativos para a população dependente desses serviços.
Para Jéssica, a estatização do transporte público surge não apenas como uma possibilidade para garantir maior estabilidade no serviço, mas também como uma forma de oferecer bons salários e benefícios, o que pode atrair mais trabalhadores e reduzir a insatisfação da categoria.
A especialista considera que os motoristas de ônibus enfrentam uma rotina desgastante, o que exige melhores condições de trabalho. “Dirigir no Brasil hoje é bastante estressante, então é realmente necessário que a gente remunere bem essas pessoas. Existem alguns estudos que mostram que as taxas de doenças coronárias e de infarto em motoristas são muito mais elevadas do que no restante da população. Então, acho que é uma categoria que a gente precisa olhar com cuidado. E se não quer ter greve, então precisa que os patrões deem melhores condições de trabalho para essa população”, reforça.
Projetos e diferenciais no transporte público em diferentes capitais do Nordeste
Fortaleza se destaca com diversos projetos inovadores no setor de mobilidade urbana. O aplicativo “Meu Ônibus Fortaleza” facilita a vida dos usuários, oferecendo informações em tempo real sobre a chegada dos ônibus e o percurso dos veículos. O sistema “Bilhete Único” oferece integração entre os ônibus dentro de um intervalo de duas horas, enquanto o “Bilhetinho” garante a gratuidade para crianças de 2 a 7 anos.
Além disso, o “Projeto Bicicletar” promove a mobilidade sustentável com um sistema de bicicletas compartilhadas, contando com 192 estações e mais de 1.200 bicicletas. Essas iniciativas contribuem para um transporte público mais eficiente e ecológico na capital cearense.
Em Aracaju, um dos principais projetos em andamento é o teste do ônibus elétrico, que circula pelas ruas da cidade com o objetivo de avaliar sua viabilidade e aceitação. O ônibus elétrico está em fase de testes e percorre quatro linhas estratégicas que atendem áreas comerciais e shoppings. A cidade busca uma alternativa sustentável e eficiente para melhorar o transporte coletivo, contribuindo com um modelo mais limpo e moderno.
Já em Natal, o Plano Diretor de Mobilidade Urbana tem como objetivo transformar a cidade em um modelo de transporte eficiente, seguro e sustentável. O plano busca integrar diferentes modais de transporte, incentivar o uso de bicicletas e ampliar a acessibilidade para pessoas com deficiência. Com a participação ativa da sociedade e diversos órgãos, o plano prevê melhorias na infraestrutura viária e a criação de corredores de ônibus, além da modernização da frota.
Teresina, por sua vez, investe na requalificação e expansão de seu metrô, com o objetivo de melhorar a qualidade do transporte público e ampliar a cobertura para mais bairros. A ampliação visa integrar o metrô a outras formas de transporte e melhorar a eficiência do sistema, com recursos federais para garantir sua execução. Além disso, o governo estadual também está investindo na infraestrutura rodoviária e no transporte intermunicipal, ainda em desenvolvimento.
Recife, com o apoio do PAC e investimentos no Plano de Mobilidade Urbana, está ampliando sua infraestrutura de transporte público. O programa inclui a recuperação do metrô da cidade com um investimento de R$136 milhões e a implementação de Faixas Azuis, que priorizam o tráfego de ônibus. A Faixa Azul, com destaque para a Avenida Agamenon Magalhães, é uma das ações que visa melhorar a fluidez do transporte coletivo na cidade, tornando-o mais rápido e eficiente.
João Pessoa está investindo significativamente em transporte público, com a construção de novos terminais de ônibus e a implantação do sistema BRS (Bus Rapid Service). O projeto inclui a criação de cinco novos terminais de ônibus, com investimentos de R$400 milhões, e a modernização da frota, com a adição de 120 novos ônibus em 2024. A cidade também busca revitalizar a mobilidade urbana com a parceria entre o Governo do Estado e a Prefeitura, visando modernizar o transporte coletivo.
São Luís também está avançando com a modernização do seu sistema de transporte público, destacando-se a implementação de bilhetagem eletrônica para ônibus urbanos e semi-urbanos. O sistema oferece novas formas de pagamento, como PIX e QR Code, facilitando o acesso dos passageiros ao transporte coletivo. Além disso, há uma preocupação com a sustentabilidade financeira do sistema, com discussões sobre a necessidade de subsídios para garantir a acessibilidade para a população de baixa renda.
Essas ações buscam tornar o transporte público mais eficiente e acessível para a população. No entanto, para que esses projetos sejam efetivamente sustentáveis e atendam as necessidades da população, especialmente a de baixa renda, é preciso mais do que inovação.
Para o professor, o governo tem condições de melhorar o sistema de transporte público de maneira ainda mais eficaz e simples. “Basta pegar o recurso do IPVA e destiná-lo ao transporte público, além de cobrar das empresas. Existem formas de fazer isso, desde que se entenda que o transporte público é uma questão essencial para a população, especialmente para a de baixa renda, que mora mais distante e enfrenta dificuldades para acessar trabalho, saúde e outros serviços”, explica.
“Tudo isso poderia ser resolvido se os poderes constituintes – o prefeito, o governador e o governo federal – realmente dessem ao transporte público o papel que ele merece, conforme está na Constituição”, conclui Lima Neto.