No centro histórico de Salvador, entre os paralelepípedos do Pelourinho e as fachadas coloniais que resistem ao tempo, pulsa uma das pedras fundamentais para o futuro do Brasil. Ali, como em tantos outros pontos do Nordeste, a história não está apenas nos livros ou nas salas de aula — ela está viva, presente, e agora, reconhecida. Um novo mapeamento nacional destaca o Nordeste como o maior guardião dos chamados lugares de memória e consciência ligados à história dos africanos escravizados no país.
Ao todo, 44 dos 100 locais identificados pelo Observatório de Direitos Humanos (ObservaDH), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), estão no Nordeste. O número coloca a região à frente do Sudeste (39), Sul (11), Centro-Oeste (3) e Norte (1) no inventário oficial.
A coordenadora-geral de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas (CGMET), Fernanda Thomaz, afirma que o mapeamento dos lugares de memória caminha no sentido de valorizar o local e sua história. “Ele não só valoriza o local, como valoriza exatamente a cultura e a história da população negra. Então, ao valorizar esse local, ele possibilita, sobretudo se a gente mapeia e sinaliza esses lugares, possibilita que, na verdade, tenha um atrativo turístico também. E você cria uma cultura que valoriza a importância da história daquele local”, destaca
Patrimônio vivo e ativo
A Bahia é o estado com mais locais reconhecidos: são 23 no total. Entre eles, destacam-se marcos como o já citado Largo do Pelourinho, o Campo da Pólvora e o Mercado Modelo, todos localizados em Salvador, além de sítios emblemáticos como o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, em Alagoas, e o Engenho Massangana, em Pernambuco. A lista inclui tanto espaços já patrimonializados quanto territórios históricos que ainda não receberam sinalização formal.
Mais do que reconhecer a importância histórica desses locais, o levantamento aponta para o futuro: a valorização do patrimônio como ferramenta de inclusão, educação, identidade e desenvolvimento territorial. “Como muitas histórias são silenciadas — histórias que envolvem a população negra, as descendentes de pessoas escravizadas — são negligenciadas, não existe nem o olhar, nem o imaginário social, nenhuma valorização do poder público ou da própria sociedade em torno daquela história, daquela experiência naquele local”, reforça.
“Então, a partir do momento que a gente mapeia, sinaliza, faz todo o investimento para tornar essa história pública, é criado também um olhar para aqueles locais — um olhar de interesse. Interesse de quem vai visitar, por exemplo. E isso pode aumentar o turismo naquela região, e o turismo tendo outro perfil também”, complementa a coordenadora.
Fernanda se refere ao turismo em um sentido mais amplo, mas destaca que também é possível fomentar uma cultura de visitação — que envolve desde escolas até turistas interessados em conhecer esses espaços. Essa dinâmica pode mobilizar e transformar a rede econômica ao redor do local.
“Então, de certa forma, essa valorização pode criar novos olhares ou reforçar uma valorização pré-existente, ou que nem existia, daquele local — e isso pode aumentar o interesse turístico e movimentar toda uma economia em torno daquele espaço, dando sentido também a ele”, considera.
O mapeamento tem como base o “Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil”, realizado em 2013 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com a Unesco. A proposta não se limita à catalogação — ela se articula com ações práticas e políticas públicas voltadas à preservação, visibilidade e uso social desses espaços.
Segundo Fernanda, o MDHC, desde o início da atual gestão, vem promovendo ações que ampliam a visibilidade e a importância desses territórios. “O Ministério de Direitos Humanos valoriza exatamente esse tipo de memória. Valoriza fazer esse mapeamento, identificar e sinalizar esses lugares. Mas, na verdade, o principal interesse é que esses locais sejam valorizados publicamente, de forma ampla, pela sociedade brasileira.”
Nesse contexto, ela explica que a intenção é fortalecer políticas públicas de forma abrangente, englobando não apenas a identificação e sinalização, mas também a produção de conhecimento e materiais de divulgação sobre esses espaços.
“Pensando no caso do Nordeste, a ideia é trazer outro lugar de valorização do Nordeste na sociedade brasileira. Tão pouco se olha para o Nordeste — sobretudo nas políticas públicas, que, na verdade, são significativamente maiores no Sudeste. É uma necessidade importante valorizar as diferentes culturas do Nordeste, principalmente aquelas ligadas à sociedade afrodescendente.”
Ela ressalta ainda que o Ministério conta com profissionais e servidores atuando diretamente na região. “É nosso interesse, sim. Tanto que o Ministério tem profissionais e servidores no Nordeste que cuidam diretamente das nossas ações.”
Como exemplo, menciona a atuação da CGMET, que conta com servidores em PGD na região, o que permite um diálogo constante com a sociedade civil e o atendimento a demandas específicas. “Ter servidores do Nordeste pensando políticas públicas sobre a memória da escravidão no Nordeste faz parte da política do Ministério desde o início de 2023.”
De acordo com Fernanda, apenas na Bahia, 25% das ações do projeto de sinalização e reconhecimento dos lugares de memória da herança da escravidão estão concentradas. Há projetos e diferentes frentes de diálogo voltadas para a região, reforçando o interesse pela descentralização. A criação da coordenação, inclusive, partiu dessa lógica. O objetivo é mapear os lugares de memória de forma ampla, respeitando a individualidade de cada território, sem estabelecer hierarquias e valorizando as diferenças de maneira equilibrada em todo o país.
Sinalizar o passado para ativar o presente
Um dos principais eixos do projeto é a sinalização física dos 100 pontos mapeados. Placas informativas com conteúdo histórico estão sendo instaladas para tornar esses lugares acessíveis à população local e aos visitantes. A Serra da Barriga, em União dos Palmares (AL), e o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, foram os primeiros a receber a sinalização.
A iniciativa tem apoio técnico do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e envolve também os ministérios da Igualdade Racial, da Cultura e da Educação. A intenção é que esses lugares se tornem não apenas pontos turísticos, mas também polos de formação cultural e cidadania.
Turismo de memória como vetor de desenvolvimento
A valorização desses locais abre caminho para uma forma de turismo que cresce no mundo todo: o turismo de memória. Atraindo visitantes interessados em experiências históricas autênticas e socialmente significativas, ele movimenta economias locais, fortalece cadeias produtivas e estimula o empreendedorismo, especialmente de base comunitária.
Mas, Fernanda não deixar de destacar que, para que as ações sejam viáveis, o diálogo com os entes locais é fundamental. “Em muitas de nossas ações, em muitos dos nossos projetos, não tem como a gente realizar sem diálogo com o poder público local. Para desenvolver algumas ações é muito difícil sem isso”.
Cultura como estratégia de futuro
O mapeamento e a sinalização dos lugares de memória inserem o Nordeste num cenário estratégico de reconstrução da narrativa histórica brasileira. Mas, mais do que isso, posicionam a região como protagonista de uma nova política de desenvolvimento, que une cultura, educação e economia.
Nesse caminho, não tem como não pensar em políticas públicas para a inclusão da população negra. Quem aponta para isso é o professor e mestre em Desenvolvimento Local, Jorge Vieira. Segundo ele, a visão é que projetos públicos voltados à população negra poderiam ser mais eficazes para garantir que o mapeamento desses locais de imóveis negros seja transformado em oportunidades de desenvolvimento social e econômico.
“A primeira coisa fundamental é a questão da regularização dos territórios quilombolas. Porque se a população não sustenta os territórios, como é que eles vão se desenvolver? Então a primeira coisa é essa. Tem um artigo na Constituição Federal de 88 que é muito claro: deve, no prazo de cinco anos após a promulgação, regularizar todos os quilombos do Brasil. Só pra você ter uma ideia, eu disse pra você que nós temos 98 quilombos em Alagoas, e somente um foi regularizado. Então, veja. A primeira coisa é a questão dos territórios”, expõe.
“A segunda coisa é a educação escolar quilombola, que é outro elemento totalmente ignorado pelos municípios, pelos estados, etc. E a terceira questão é a garantia das cotas para que, efetivamente, os negros entrem na universidade. Então, tem aí a questão do território e a questão da educação — são dois elementos das políticas públicas fundamentais. Claro, consequentemente, vêm os projetos de desenvolvimento e o incentivo à geração de emprego e renda”, conclui Vieira.