Por mais de três décadas enfrentando ondas traiçoeiras, preconceitos silenciosos e a escassez de peixes, a pescadora Maria Aparecida da Silva transformou sua história em símbolo de resistência no litoral de Alagoas. Desde os 17 anos, quando decidiu acompanhar o marido no ofício, ela fez do mar sua rota de sobrevivência — ainda que navegar nesse universo predominantemente masculino não tenha sido tarefa fácil.
“Olha, o principal desafio primeiro é ser mulher no universo masculino. E o segundo desafio é ser aceita por homens. É muito complicado, é muito delicado, porque hoje o mundo já tem uma visão diferente. Mas imagina 35 anos atrás”, relembra. Com naturalidade, Maria fala da rotina dura que começou ainda na infância, aos 4 anos, e que se consolidou como sustento da família. “Tenho uma filha e ela foi criada com a renda do mar. Filha de pescador, tá no registro de nascimento.”
A história de Maria é também um retrato da luta silenciosa de tantas outras mulheres que hoje dividem as redes, os barcos e os frutos do mar com as obrigações de casa. No entanto, as dificuldades vão além das ondas.
Um mar mais hostil: poluição e escassez
As mudanças climáticas e a poluição marinha têm alterado profundamente a rotina dos pescadores e marisqueiras. “Com a poluição, os plásticos, toda a carga de lixo que vai pro mar, deixa-se de criar a cadeia produtiva. Tem várias espécies que já foram extintas”, alerta Maria. Ela cita exemplos como o ferreiro branco, a saia rota e a pescadazinha, que praticamente sumiram da costa alagoana.
Outro exemplo grave de degradação está nos corais. “Aqui na Pajuçara, os corais já viraram calcário. Isso precisa de uma ação governamental urgente. Talvez não vá recuperar, mas pelo menos evitar que o prejuízo avance”, pontua.
A falta de ações efetivas de preservação do meio ambiente, aliada à ausência de infraestrutura adequada, agrava ainda mais a situação. A dragagem da Lagoa Mundaú, promessa feita há décadas, continua no papel. O assoreamento e a dificuldade de navegação são problemas antigos que afetam diretamente a pesca artesanal.
Invisibilidade feminina e ausência de políticas públicas
Apesar de sua contribuição fundamental, as mulheres na pesca ainda sofrem com a invisibilidade institucional. “Falta mais incentivo para a presença feminina. Não é fácil ser mulher, ser dona de casa e também ser pescadora, marisqueira”, desabafa Maria. Ela destaca a ausência de políticas específicas para o público feminino: creches, escolas em tempo integral, apoio financeiro e programas de capacitação.
“Tem muita marisqueira que sai de manhã de casa e volta à noite. Não tem onde deixar os filhos, não tem com quem contar. Isso precisa ser discutido no município, no estado e depois chegar à esfera nacional”, defende.
Sebrae Delas fortalece o protagonismo feminino na pesca artesanal
Para enfrentar esse cenário de desigualdade e promover o protagonismo feminino nos territórios tradicionais, iniciativas como o Sebrae Delas têm ganhado importância crescente em Alagoas. Em 2024, o programa ampliou sua atuação e já alcançou mais de 2.600 mulheres em 72 municípios do estado.
Voltado à promoção do empreendedorismo feminino, o Sebrae Delas oferece capacitações, mentorias e eventos de visibilidade que contribuem diretamente para o fortalecimento das mulheres no mercado — inclusive na pesca e na mariscagem. O programa desenvolve competências técnicas e socioemocionais, e fornece ferramentas para que mulheres liderem com mais segurança seus próprios negócios e iniciativas.
De acordo com o Sebrae Alagoas, um dos focos do programa é estimular a autonomia e gerar redes de apoio que ultrapassem o aspecto técnico e toquem também nas barreiras sociais que muitas mulheres enfrentam. “É fundamental que mulheres que já atuam de forma tradicional em áreas como a pesca artesanal se sintam apoiadas, tenham acesso à informação, à tecnologia e a políticas públicas estruturantes”, aponta a instituição.
A atuação do programa inclui ainda o mapeamento de oportunidades para inovação em setores tradicionais. Em comunidades pesqueiras, por exemplo, o Sebrae tem promovido oficinas e rodas de conversa sobre liderança feminina, uso de redes sociais para venda de pescado e acesso a crédito. São ações que visam garantir sustentabilidade e protagonismo às mulheres do mar.
A palavra do pescador
“Eu sou pescador da lagoa e do mar. Tanto faz. Quando tá bom no mar, a gente vai com a rede mais grossa, que pega os peixes maiores e de maior valor”, conta um pescador alagoano que iniciou no ofício ainda menino, levado pelo padrasto.
Apesar de manter viva a tradição da pesca, ele reconhece que os tempos mudaram. O mar está mais arriscado, os peixes menos abundantes e o custo para manter a atividade cada vez mais alto. “A pescaria no mar é perigosa. Já passei por muito risco. Se a jangada virar, tem que saber nadar bem pra conseguir voltar. Mas é o que dá mais dinheiro pra sustentar a família.”
A precariedade da infraestrutura é outro entrave. A entrada na lagoa está cada vez mais difícil, com a boca da barra assoreada. “Corre o risco de virar a jangada antes de entrar. A lagoa está há mais de 40 anos esperando por uma dragagem. A gente espera por dias melhores para os filhos e netos.”
Mesmo com os desafios, ele destaca a importância das iniciativas de apoio, como o trabalho da Colônia de Pescadores. “Eles ajudaram muito. Consegui comprar rede, ajeitar o barco com motor de 15 HP. Uma rede custa R$ 2.500, R$ 3.000. Com a ajuda da Colônia e um prazo de seis meses, foi possível.”
Ambos os relatos — o da pescadora e o do pescador — apontam para o mesmo horizonte: o futuro da pesca artesanal em Alagoas está ameaçado. Se nada for feito para conter o avanço da degradação ambiental, garantir o acesso a equipamentos e fortalecer políticas públicas, a tradição pode desaparecer junto com as espécies.
A preservação dos “cabeços”, como são conhecidos os locais de pesca, é outra demanda urgente. “Precisamos de estudo aprofundado para descobrir novos pesqueiros. Isso só com apoio governamental”, enfatiza Maria Aparecida.
Em meio às adversidades, persiste a esperança. “A gente espera um bom governo, uma dragagem, um futuro melhor. Isso tudo é pra garantir que nossos filhos e netos ainda possam viver da pesca”, afirma o pescador.
Resistência, tradição e pertencimento
A pesca artesanal em Alagoas é mais do que uma atividade econômica: é cultura, memória e pertencimento. E, embora marcada por desafios, é mantida viva por homens e mulheres que seguem acreditando no mar como fonte de vida. Especialmente por aquelas que, como Maria, ousaram desafiar o machismo das marés e abriram caminho para que outras mulheres também possam lançar suas redes com dignidade.
Combustível mais barato e segurança jurídica têm garantido alívio no bolso de centenas de pescadores em Alagoas. Com a ampliação de dois para quatro pontos de abastecimento com isenção de ICMS sobre o diesel, o governo estadual fortalece a atividade pesqueira e impulsiona a economia de comunidades litorâneas que dependem diretamente do mar para sobreviver.
A medida, coordenada pela Secretaria da Fazenda (Sefaz-AL), passa a valer em Piaçabuçu, Pontal do Peba, Pontal de Coruripe e Maceió, beneficiando 360 profissionais com 60 embarcações cadastradas. Em 2024, mais de 265 mil litros de combustível já foram distribuídos com isenção, o que representou uma economia de R$ 307 mil para os trabalhadores do setor. A cota anual autorizada ultrapassa 1,1 milhão de litros por ano.
A política de incentivo fiscal está em vigor desde 2003, com efetivação prática em 2015. Segundo a secretária da Fazenda, Renata dos Santos, a iniciativa vai além da economia. “A ampliação dos pontos e a renovação do benefício reafirmam nosso compromisso com quem vive da pesca”, afirmou.
Desde 2020, o total de diesel fornecido com isenção já ultrapassa 1,4 milhão de litros, resultando em uma economia acumulada de mais de R$ 1,1 milhão para os pescadores, conforme dados da Coopaiba (Cooperativa dos Agricultores Familiares e dos Empreendimentos Solidários). De acordo com o presidente da entidade, Antonino Cardoso, cerca de 3.800 famílias já foram contempladas, sendo 240 incluídas apenas no último ano.
Para a secretária de Agricultura e Pecuária, Aline Rodrigues, a política não apenas fortalece o setor, como também dinamiza a economia regional. “Com a ampliação dos pontos de abastecimento, reduzimos os custos logísticos, aumentamos a eficiência das embarcações e impulsionamos a cadeia produtiva da pesca”, reforçou.
*Esta é a quarta e última reportagem da série publicada pelo Investindo Por Aí sobre a economia do mar. As outras podem ser acessadas abaixo: