A navegação por cabotagem pode reduzir em até 89% as emissões de CO₂ no transporte de cargas em comparação ao modal rodoviário. É o que revela um estudo da Norcoast, empresa brasileira de navegação costeira, com base em operações realizadas em 2024 para uma multinacional do setor químico. As rotas conectaram o Porto de Suape (PE) aos portos de Manaus (AM), Santos (SP) e Paranaguá (PR).
Segundo o levantamento, a eficiência energética da cabotagem coloca o modal como um dos principais aliados da logística nacional na agenda de descarbonização. A estratégia combina menor impacto ambiental com competitividade operacional.
O professor associado do Departamento de Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará (UFC), Bruno Bertoncini, diz que isso é especialmente relevante em trajetos longos e volumosos, como os que conectam o Norte/Nordeste ao Sul/Sudeste.
“A diferença torna-se ainda mais significativa em rotas onde a rodovia é ruim ou sem pavimentação (prevalente no Norte/Nordeste) — aumentando o consumo de diesel e as emissões; quando há grandes volumes de carga e distâncias extensas; e contexto de frotas envelhecidas e ineficientes, atualmente vivenciado no país”, destaca.
Impacto das emissões do setor de transportes
Ele salienta uma contribuição do setor de transportes de 260 milhões de toneladas de CO₂ equivalente (MtCO₂e) por ano, o que representa aproximadamente 11% das emissões nacionais. Inventários nacionais confirmam que o transporte é um dos maiores emissores do setor de energia, cuja intensidade de carbono e trajetória dependem fortemente da matriz modal e do mix de combustíveis.
“Com o predomínio pelo transporte rodoviário e pelo uso do diesel, temos uma baixa eficiência energética em termos de volume transportado por quilômetro”, ressalta.
O professor acrescenta que, caso não haja intervenções e os volumes transportados continuem crescendo nas mesmas taxas anuais, a projeção média anual para as emissões do setor de transportes no Brasil chegará a 424 MtCO₂e até 2050.
“Embora alarmante, pode-se dizer que existe potencial para reversão desse quadro, desde que medidas que passam por estímulo à multimodalidade, ampliação do uso de biocombustíveis, requalificação da frota veicular rodante e eletrificação sejam empregadas, o que poderia reduzir em até 70% os níveis de emissão do setor até 2050, levando a um total de 137 MtCO₂, considerando aí as projeções de crescimento da demanda”, observa.
Nesse cenário, a cabotagem surge como uma ferramenta estratégica de transição. “Além da redução das emissões, esta prática poderia trazer mais confiabilidade, segurança e eficiência nas estratégias logísticas, podendo inclusive resultar em economia para os consumidores, ao se conseguir reduzir custos operacionais”, aponta.
Potencial do Nordeste e desafios estruturais
Para o especialista, o Nordeste tem potencial enorme para se beneficiar da cabotagem, especialmente porque parte dos produtos consumidos na região vem do Sul e Sudeste, e a região conta com extensa faixa litorânea.
“Contudo, haveria necessidade de investimentos para melhoria dos portos e, principalmente, integração com ferrovias e rodovias. Daí a importância do projeto da Ferrovia Transnordestina, a qual poderá realmente oportunizar mudanças na forma como produtos são transportados, além de contribuir para aumento da competitividade nacional junto ao mercado internacional”, destaca.
Ele também chama atenção para a baixa densidade da malha ferroviária no Nordeste, além das condições insatisfatórias das rodovias, algumas com capacidade reduzida para o tráfego.
Comparativo de emissões de CO₂ entre modais rodoviário e marítimo no Nordeste
Emissões de CO₂ por tonelada • 2024 (Nordeste)
Fonte: estudo de caso de cabotagem (2024). Rodoviário: 429 kg CO₂/t • Marítimo (cabotagem): 47 kg CO₂/t
Estrutura operacional e alcance de mercado
O diretor comercial da Norcoast, Márcio Salmi, explica que a empresa opera com quatro embarcações e escalas semanais em seis portos estratégicos, apoiada por 55 transportadoras parceiras homologadas. “A Norcoast oferece uma cobertura abrangente e, principalmente, uma rede capilarizada”, afirma.
A estrutura operacional foi planejada para oferecer um modal inteligente que contribua para um Brasil mais verde, aliando sustentabilidade e eficiência sem perder competitividade.
A rota direta Manaus–Santos, por exemplo, percorre o trajeto em nove dias no sentido Sul e quinze no sentido Norte, garantindo agilidade em longas distâncias. A aposta na multimodalidade é outra estratégia central, permitindo soluções de ponta a ponta, com redução de custos e prazos otimizados.
Eficiência energética e benefícios logísticos
Segundo Bertoncini, o transporte marítimo apresenta maior eficiência energética e de escala, pois os navios transportam grandes volumes com menor consumo e menor custo por tonelada.
Ao integrar isso a um sistema multimodal, pode-se ter um ganho na redução de custos, o que certamente será percebido pelo consumidor final.
“A estratégia poderia levar a redução da sobrecarga nas rodovias, prolongando a vida útil da infraestrutura e reduzindo acidentes e custos de manutenção, o que também seria positivo para as metas de equilíbrio fiscal, dado que boa parte dos investimentos são de origem pública”, diz.
O professor acrescenta que a melhor diversificação da matriz de transportes poderia resultar em menos intervenções ambientais em áreas sensíveis, como nas florestas, em comparação com a construção/duplicação de novas rodovias.
Poderia também reduzir números de acidentes e as consequências desses impactos para sociedade e economia.
Histórico da matriz de transportes brasileira
Bertoncini explica que a matriz de transporte brasileira é historicamente dominada pelo modal rodoviário, que hoje responde por cerca de 62% do total. Essa predominância remonta, pelo menos, ao final da década de 1950, quando surgiram as primeiras políticas públicas voltadas à expansão da malha rodoviária no país.
“No início da década de 2010, com a Política Nacional de Logística, houve o estabelecimento de critérios para se obter uma divisão modal mais equilibrada, condizente com os desafios continentais e, objetivando, a redução dos custos, de forma a aumentar a eficiência logística nacional”, afirma.
Ações mais recentes com esse propósito incluem a Política Nacional de Cabotagem e os novos entendimentos para o setor ferroviário.
“Obviamente, os efeitos só serão percebidos ao longo dos próximos anos. Um dos pontos mais cruciais, que decorre dos acordos climáticos dos quais o Brasil é signatário, passa pelas metas climáticas”, observa.
O Brasil apresentou sua segunda Contribuição Nacional Determinada (NDC) durante a COP29, realizada em Baku, em novembro de 2024, comprometendo-se a reduzir as emissões líquidas de gases de efeito estufa entre 59% e 67% até 2035, em relação aos níveis de 2005. Isso equivale a uma faixa de 850 milhões a 1,05 bilhão de toneladas de CO₂ equivalente.
A meta está alinhada ao objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5 °C em relação à era pré-industrial, reforçando também o compromisso de alcançar a neutralidade climática até 2050.
“Parte desse desafio passa pelo setor produtivo, incluindo o setor de transportes”, destaca Bertoncini.
O transporte rodoviário responde por mais de 60% da movimentação de cargas no país e tem forte impacto nas emissões de poluentes, como o CO₂.
“Mesmo com as melhorias na tecnologia veicular e dos combustíveis, como aumento da presença de biodiesel, a eficiência energética dos modos rodoviários é baixa, agravada por frotas envelhecidas e infraestrutura precária”, completa.
Condições da malha rodoviária e impactos ambientais
Grande parte da malha rodoviária brasileira sequer é pavimentada — estimativas indicam que apenas entre 13% e 34% têm pavimentação, e muitos trechos estão em condições irregulares ou ruins.
“Isso resulta em aumento do consumo de combustível e emissões extras por conta de trânsito lento, buracos e elevação do tempo de viagem. Soma-se a isso uma operação muitas vezes pautada em grandes distâncias a serem percorridas”, pontua o professor.
Ele também ressalta que a abertura de estradas provoca desmatamento, fragmentação de hábitats, poluição e outros impactos ambientais relevantes.
“Regiões Norte e Nordeste são as que apresentam infraestrutura mais precária; muitos trechos sem pavimentação, dificultando a eficiência e aumentando custos logísticos e emissões por cargas. Deve-se lembrar que uma das áreas agrícolas mais promissoras se encontra nesta região, o que certamente trará desafio para escoamento das safras e abastecimento de insumos e bens para atendimento das populações”, comenta.
Salmi avalia que a cabotagem tem ganhado espaço diante da pressão por metas de sustentabilidade.
“Com a crescente conscientização impulsionada pela agenda ESG, empresas de todos os portes estão repensando suas escolhas logísticas não apenas por custo, mas também, e cada vez mais, por pressões e compromissos sustentáveis.
Inclusive, a proximidade de eventos como a COP30 intensifica o debate climático global, posicionando a descarbonização da logística no centro das discussões corporativas”, diz.
Impacto econômico e fortalecimento do Porto de Suape
A expansão da cabotagem, segundo Salmi, pode reconfigurar cadeias produtivas no Brasil. “Com mais de 8 mil km de costa, o Brasil é um país de dimensões continentais que possui vocação natural para o transporte marítimo, ao passo que o modal conecta o país de Norte a Sul, interligando cidades e estados de forma eficiente e sustentável”, afirma.
O fortalecimento de polos industriais e logísticos em torno de portos estratégicos é um dos efeitos diretos. No caso de Suape, sua localização privilegiada o consolida como hub de carga internacional.
Nesse sentido, a Norcoast tem ampliado sua presença na região, realizando o transporte de carga feeder – de origem ou destino internacional – e consolidando-se como um player estratégico na conexão e distribuição ao longo da costa brasileira.
“Isso acontece porque a proximidade com terminais portuários otimiza a movimentação de cargas, reduz custos de armazenagem e transporte terrestre, além de facilitar o acesso a mercados consumidores”, explica Salmi.