O Dia do Capoeirista ainda não existe oficialmente no calendário nacional, mas em 3 de agosto, quem conhece o peso de uma roda bem formada, o som ritmado do berimbau e a potência de uma ginga ocupando o espaço público sabe que há o que celebrar. A data foi instituída em 1985, no estado de São Paulo, pela Lei nº 4.649. Desde então, a capoeira segue se reinventando como prática cultural, esportiva e, sobretudo, como motor econômico descentralizado que pulsa com força no Nordeste.
A trajetória da capoeira carrega marcas de resistência. Proibida pelo Código Penal de 1890, perseguida nas ruas e criminalizada em praça pública, ela sobreviveu à base de apelidos e anonimato. Só foi legalizada nos anos 1930, quando Mestre Bimba conquistou espaço até mesmo junto ao governo de Getúlio Vargas. Décadas depois, em 2014, a Unesco reconheceu a roda de capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Na Bahia e em outros estados nordestinos, essa arte se tornou parte de uma engrenagem econômica que movimenta saberes e gera renda. A capoeira vende camisas, berimbaus, aulas, cursos, apresentações e até experiências voltadas ao turismo. Alimenta mestres e comunidades, alcança crianças e jovens, ocupa ruas, escolas e eventos.
A prática está ligada à economia popular e solidária, estabelecendo conexões com áreas como turismo, moda, gastronomia, audiovisual e educação. A cidade de Salvador é um dos principais centros dessa movimentação. O Festival de Capoeira Ancestralidade e Resistência, realizado entre 2 e 5 de maio no Parque Costa Azul, transformou o espaço na chamada “Cidade da Capoeira”, com oficinas, feira gastronômica, rodas e shows.
Gratuito, com acesso mediante doação de alimentos, o evento teve como tema “Gingando pelo Mundo” e reuniu sete eixos temáticos. Falou-se de ancestralidade, da presença feminina, das infâncias, da capoeira em territórios internacionais e das conexões com espiritualidade e política.
A realização foi do coletivo Capoeira em Movimento Bahia (CMB), com patrocínio do Governo da Bahia, por meio da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre). Desde 2019, o CMB atua em projetos como o Papoeira em Movimento, campanhas contra a violência de gênero e o curso Qualifica Capoeira. O grupo também defende a aplicação da Lei Moa do Katendê, que propõe a inserção da capoeira nas escolas públicas.
O reconhecimento da capoeira como atividade econômica vem sendo fortalecido por eventos e pesquisas. No Brasil Nordeste – 1º Festival de Economia Popular e Solidária, mestres do CMB conduziram rodas e oficinas que mostraram o potencial da prática como fonte de trabalho e renda em territórios historicamente marginalizados.
Uma pesquisa do Observatório da Economia Criativa da Bahia (OBEC), chamada Capoeira de Salvador: economia criativa e gestão cultural, mapeou como a capoeira movimenta a cadeia produtiva local. O levantamento entrevistou 67 mestres, contramestres e professores e mostrou que Salvador concentra atividades em 79 bairros, com presença também em 47 cidades baianas, 16 estados e 31 países.
O estudo investigou as fontes de renda dos grupos e mestres, a partir da importância atribuída a diferentes produtos e serviços. A venda de camisas para treino e evento foi apontada como a principal fonte, com 43,9%, seguida pela venda de calças de capoeira (39,4%). O berimbau, instrumento símbolo da capoeira, aparece como item comercializado por 33,3% dos entrevistados.
Outros produtos, como música, audiovisual, livros e instrumentos como pandeiros e atabaques, registraram alta incidência de respostas “não se aplica”. Isso pode indicar que muitos grupos atuam com foco em atividades mais básicas, como o ensino e a realização de rodas, o que reforça a importância dos uniformes como fonte de renda recorrente.
A origem dos produtos usados nas práticas também reforça a força local da economia da capoeira. A maioria dos grupos adquire roupas e instrumentos diretamente em Salvador. Dos 60 respondentes, 85% disseram comprar calças e 93,3% camisas na cidade. O berimbau tem origem local em 88,4% dos casos, e os atabaques e pandeiros em 85,7% e 83,3%, respectivamente.
Itens complementares como caxixi, reco-reco, agogô, arame, baquetas e dobrões também vêm, em sua maioria, da capital baiana. Esses dados revelam a presença de uma cadeia produtiva consolidada, que envolve fabricantes, costureiras, músicos e mestres em uma rede que funciona em escala comunitária.
Esse sistema não está restrito à Bahia. O Grupo Muzenza, criado em 1972 por mestre Paulão da Muzenza e desenvolvido por mestre Burguês, tem presença em todos os estados brasileiros e em mais de 50 países. Além das aulas, promove o ENCAMUZENZA, encontro voltado à formação de educadores e profissionais da saúde, e publica livros que aliam prática e reflexão sobre a capoeira.
Outros grandes eventos realizados no Nordeste, como o Festival Nacional de Capoeira Angola, em Sergipe, e o Festival Ginga Nação, na Paraíba, mostram a força do território como centro de articulação política, cultural e econômica.