Nos últimos despachos de 2024, o presidente Lula achou espaço para sancionar a Lei 15.068/2024, conhecida como Lei Paul Singer de Economia Solidária. A nova legislação estabelece a Política Nacional de Economia Solidária e o Sistema Nacional de Economia Solidária (Sinaes), dando condições para a criação do primeiro marco regulatório para o setor no país.
O projeto é resultado de mais de uma década de esforços para regulamentar a Economia Solidária, e surge como uma alternativa de organização econômica e social diante do assombro da precarização do trabalho, com a informalidade crescente, e de formas predatórias de produção, como a industrial, responsável pelo avanço da crise climática e ambiental.
A nova lei formaliza o reconhecimento e o apoio a empreendimentos que promovem trabalho coletivo, autogestão e práticas sustentáveis, fortalecendo a inclusão social e econômica.
“Nós estamos muito convencidos de que em algum momento dessa história, não muito distante, a sociedade vai perceber que a saída para sua própria continuidade e organização é a Economia Solidária. E aí precisa vir o Estado e colocar tinta e peso nessa forma de organização”, afirma diretor de parcerias e fomento e secretário substituto da Secretaria Nacional de Economia Solidária, órgão anexo ao Ministério do Trabalho (MTE), Fernando Zamban.
O projeto define um empreendimento de economia solidária como aquele que, embora busque resultados econômicos, não visa lucro individual. Ele é autogerido pelos próprios membros, que compartilham coletivamente as atividades econômicas e a divisão dos resultados.
Para entender o que a lei representa na prática para a macroeconomia do País, e, principalmente, para os empreendimentos e iniciativas coletivas, confira a entrevista com Zamban na íntegra.
Investindo Por Aí: De que forma a Lei Paul Singer altera e impacta as atividades de Economia Solidária no país?
Fernando Zamban: A Economia Solidária, com esse nome, virou política pública em 2003, no governo Lula I. Mas ela é muito anterior a isso, e baseada na organização dos próprios trabalhadores, fóruns e redes. Essa organização coletiva do trabalho, que não é novidade porque já temos cooperativas, por exemplo, vem de uma concepção mais profunda ancorada na autogestão e na distribuição equitativa de resultados e ganhos econômicos.
Ou seja, há organizações coletivas que praticam economia solidária, e há organizações coletivas que não praticam economia solidária. Assim como é possível ter iniciativas privadas mais voltadas para o campo solidário. A lei estabelece, por fim, o que é de fato Economia Solidária para o governo Federal, e consequentemente para os governos estaduais e municipais.
IPA: Havia distorções na compreensão da atividade entre os entes federados?
FZ: Um governo estadual pode fazer um projeto ou uma lei voltando recursos, por exemplo, para Economia Solidária, e vai valer o que está nessa lei estadual, mesmo que isso nada tenha a ver com toda a produção intelectual sobre o tema, como a que o professor Paul Singer formulou.
A lei federal define claramente o que é Economia Solidária, e estabelece critérios claros para definir essas iniciativas. E esses critérios vão balizar, por exemplo, a captação de recursos e fomentos. Ela define o que é a Política Nacional de Economia Solidária, ou seja, não é mais o que o gestor público pensa, individualmente, essa política agora está apoiada em uma lei. Todos os entes federados terão que cumprir.
IPA: E de que forma a lei apoia as políticas regionais?
FZ: A lei reconhece uma demanda antiga dos movimentos populares que é o Cadastro Único de Empreendimentos Solidários (CadSol). Num primeiro momento pode parecer simples, apenas um cadastro, mas na medida que evolui, baseada nos critérios, o cadastro define quem vai ter acesso a política pública prioritária.
A lei cria também o Sistema Nacional de Economia Solidária. Estados e municípios fazem política nessa área, mas nós não tínhamos, até hoje, uma política integrada. O sistema corrige essa distorção.
IPA: A nova legislação altera a capacidade de investimento dos governos em negócios solidários?
FZ: Se não houver fomento e financiamento público, dificilmente teremos uma outra lógica econômica, que hoje é baseada na acumulação individual de capital. Só com fomento a Economia Solidária vai prosperar. Temos várias políticas em andamento, muito anteriores à lei, como o Programa Nacional de Apoio à Feiras, centros públicos, teve um leque de práticas que não deixava a Economia Solidária órfã. O que muda com a lei é que agora temos mais estofo para brigar por uma fatia do orçamento que seja mais condizente com que é necessário. De médio e longo prazo, temos agora a possibilidade de ampliar a capacidade de fomento.
“Precisamos organizar a vida da Economia Solidária para atender as necessidades das pessoas, senão ela não será uma política econômica, e sim assistencial”.
Fernando Zamban, secretário substituto da Secretaria Nacional de Economia Solidária
IPA: E ela deve ter impacto também sobre o crédito fornecido pelos bancos para essas iniciativas?
FZ: Pegar crédito no Brasil hoje é ruim, porque é muito caro. As garantias para que uma cooperativa ou coletivo solidário pegue crédito nos bancos são muito exigentes. Como esses empreendimentos não têm o propósito de acumulação de capital, são raras aqueles que têm capacidade garantidora, de infraestrutura, fundos, que permita convencer o setor financeiro de que o risco de emprestar para eles é menor, e por isso o crédito deve ser mais barato. Com a lei, é possível que esse risco seja diminuído, porque aí é o governo Federal dizendo para os bancos: olha, isso aqui é importante, vocês precisam ter linhas (de crédito) para atender.
IPA: Há esse diálogo com os bancos?
FZ: Estamos criando um arcabouço legal de possibilidades. A lei traz uma novidade, ela altera o código jurídico para incluir a atividade de Economia Solidária. Isso é importante porque há uma janela de cerca de 35% dos empreendimentos do Brasil que são informais, e são informais não porque querem sonegar impostos, mas porque a formatação jurídica do Brasil hoje não permite essa formalização. Ou eles vão virar associações pela facilidade tributária, mas não vão poder distribuir o resultado da produção, ou cooperativas, que poderia ser um formato mais adequado, mas com uma carga tributária elevadíssima, o que empurra esses 35% para a informalidade. Eles vão para o microempreendedorismo, ou ficam na informalidade completa. Ela cria uma natureza jurídica intermediária, mais adequada, e com isso os bancos podem oferecer créditos mais facilitados para esses segmentos.
IPA: A lei estabelece a Política Nacional de Economia Solidária. Essa política ainda será construída, ou ela já está contemplada na lei?
FZ: A lei já abarca muito daquilo que já vinha sendo construído do ponto de vista conceitual. Em termos operacionais, um eixo da política é a finança solidária. Na lei é genérico, então é preciso definir que finança é essa. No nosso entendimento é preciso criar bancos solidários e agências populares de crédito, que não deve ser isolado do sistema financeiro tradicional, é preciso integrar para dar crédito mais alinhados com esses empreendimentos.
Carecemos de um conjunto de sistemas regulatórios que ainda precisam ser construídos. A Senae vai ser o guarda-chuva disso. Queremos resgatar o Fundo Nacional de Economia Solidária. Isso é primordial tanto para o sistema de finanças, como para o sistema financeiro tradicional, que consegue injetar recursos com juros mais baratos e fazer a engrenagem funcionar numa rotação mais acelerada. Está em construção.
IPA: Há um prazo para que a política esteja estabelecida?
FZ: Já temos uma portaria para regulamentar o CadSol, que deve sair em abril. Essa é uma parte da política. Quando entrarmos na parte de regulamentação da nova pessoa jurídica, fica mais complexo, porque envolve tributação, tesouro, receita federal. A nossa perspectiva é até o final deste ano regulamentar tudo que está relacionado à lei e que não tem impacto de longo e médio prazo, como portarias, normativas, ou mesmo decreto que não mexa na estrutura federal.
Cultura de Economia Solidária
Defendemos essa percepção de como a sociedade brasileira poderia se organizar. A Economia Solidária é baseada na distribuição equitativa de resultado e na não exploração das trabalhadoras e trabalhadores. Isso não é uma utopia. A gente realmente acredita em uma outra forma de organização que não seja essa (capitalista), que não beneficia as pessoas, mas explora elas.
Se a gente pegar uma linha histórica, há uma parte longeva da organização produtiva, na época dos imigrantes, e o Estado apoiou isso. Depois tivemos o boom industrial, e o Estado apoiou, e que não funcionou muito bem. Depois tivemos uma organização econômica baseada no empreendedorismo individual. Nós estamos muito convencidos de que em algum momento dessa história, não muito distante, a sociedade vai perceber que essa é saída para sua própria continuidade e organização. E aí precisa vir o Estado colocar tinta e peso nessa forma de organização. O caminho para essa encruzilhada, com cada vez mais pessoas desempregadas, tendo que viver a sua vida de forma precarizada, é a Economia Solidária.
IPA: Se a Economia Solidária pode ser encarada como um caminho econômico em si, de que forma, ou onde vemos iniciativas conectadas as tendências de mercado?
FZ: Estamos organizando um pedaço dessa economia no digital, que nós chamamos de Economia Solidária Digital. Um exemplo disso é o fomento a uma iniciativa de motoristas de aplicativo chamada Liga Coop, e a ideia é que a gente ofereça alternativas de organização e apoio a esses trabalhadores. Se a gente imagina que a inserção econômica das pessoas passa pela coletividade, e o mundo está direcionando para o digital, precisamos organizar isso de alguma maneira.
Por exemplo, se há um empreendimento de economia da agricultura familiar, precisamos integrar isso a um sistema de entrega da produção na casa do consumidor, que está cada vez mais desacostumado a sair de casa para fazer compras. Precisamos organizar a vida da Economia Solidária para atender as necessidades das pessoas, senão ela não será uma política econômica, e sim assistencial.
IPA: Ela é aplicável, portanto, a qualquer atividade econômica?
FZ: Tradicionalmente a Economia Solidária estava ancorada em produções agrícolas, familiares e coletivas, do campo, e também no ramo de serviços, muito ligada à reciclagem e catadores, e uma parcela grande de produtores de artesanato. Como a Economia Solidária deve ser uma proposta de desenvolvimento econômico para o país, e não só a obtenção do resultado econômico individual, ela cabe em qualquer setor produtivo.
No comércio, onde tem a figura do patrão que contrata vários empregados, podemos ter empreendimentos coletivos e vender produtos do varejo. Serviços, entretenimento, beneficiamento da produção, corte e costura, plano de saúde, são todas atividades possíveis. Há uma série de setores que hoje a sociedade decide fazer de maneira individual, para acumulação de capital, que ela pode fazer solidariamente. E todo mundo sai ganhando. Melhora a vida, a saúde, e as finanças.