Por Kristhian Kaminski
Especial para o Investindo Por Aí
O Brasil enfrenta um ciclo vicioso. A renda média da população vem caindo sucessivamente, situação agravada obviamente pela pandemia de COVID-19. Por outro lado, aumenta a oferta de crédito, tanto pelas instituições financeiras tradicionais como pelas fintechs (startups do setor financeiro) que ingressaram nesse mercado. O Nordeste está na mira desse segmento. Renda caindo, tomada de crédito crescendo. Está pronta a receita para uma bolha ainda maior de endividamento, o que leva as empresas do setor a criarem produtos focados na dificuldade de compra e pagamento.
Quando o mercado de crédito cresce de forma proporcional à renda, os níveis de comprometimento financeiro das famílias ficam estáveis. Não é o que estamos vivendo hoje. O endividamento das famílias brasileiras bateu recorde no ano de 2021, com uma média de 70,9%. Na comparação com 2020, o crescimento foi de 4,4 pontos percentuais, o maior aumento registrado nos últimos 11 anos, quando começou a série histórica da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Diferentes pesquisas mostram queda na renda do brasileiro. Segundo o IBGE, em 2021 a renda média caiu 3,4%, atingindo o menor valor desde 2012. Ainda segundo o estudo da CNC, apesar do aumento do endividamento, os indicadores de inadimplência das famílias apresentaram uma queda na média anual: 25,2% das famílias afirmaram estar com contas em atraso, 0,28 ponto percentual a menos que no ano anterior, quando 25,5% dos entrevistados faziam parte desse grupo. Já o número de famílias sem condições de pagar as dívidas que estão em atraso foi de 10,5%, redução de 0,56 ponto percentual, frente aos 11% registrados em 2020.
Mas, os pesquisadores responsáveis pelo estudo explicam que a renegociação de dívidas e a contratação de prazos mais longos, assim como o maior controle dos gastos, possibilitaram às famílias condições de ampliar o endividamento e o consumo, porém, mantendo a capacidade de pagamento.
Microcrédito
Nesse contexto, nunca o chamado microcrédito teve tanta importância. Em linhas gerais, é uma modalidade de crédito, incentivada pelo Governo Federal, para pessoas que querem complementar a renda, não conseguem um emprego formal e tentam abrir um pequeno negócio como forma de sustento. Voltado, portanto, às pessoas de baixa renda, o microcrédito oferece taxas de juros abaixo da média de mercado, com prazos mais longos de pagamento.
Várias instituições financeiras tradicionais já oferecem essa modalidade de crédito há algum tempo. Bancos como Santander, Itaú, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e o BNDES são exemplos. Além deles, cooperativas como a Sicoob e a Sicredi. Mas, uma das principais referências nesse mercado é o Banco do Nordeste (BNB). Em recente divulgação de resultados, a instituição informou ter encerrado o exercício 2021 com lucro líquido de R$ 1,61 bilhão. O valor representa aumento de 58,6% em relação ao apurado no ano anterior. Ao todo, o BNB aplicou, em 2021, mais de R$ 41,8 bilhões em cinco milhões de operações em sua área de atuação, que compreende os estados nordestinos e parte de Minas Gerais e Espírito Santo. Na comparação com 2020, houve aumento de 4,2% no valor investido.
Segundo estimativas do Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (Etene), os valores investidos pelo Banco ajudaram a criar ou manter 1,7 milhão de postos de trabalho na sua área de atuação. “Especialmente em períodos críticos como o que vivenciamos em função da pandemia, torna-se evidente a importância do BNB na preservação dos empregos e na promoção do bem-estar das famílias, que é o nosso foco, além de auxiliar na competitividade das empresas da região”, afirmou o presidente José Gomes da Costa durante a divulgação de resultados.
As contratações em 2021 com recursos do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), principal funding da Instituição, abrangeram mais de 651 mil operações que somaram R$ 25,9 bilhões, valor ligeiramente superior ao contratado no ano anterior.
Os financiamentos de longo prazo, que englobam investimentos rurais, industriais, agroindustriais, infraestrutura, comércio e serviços, foram responsáveis por 67% dos recursos contratados, somando R$ 28 bilhões em 655,3 mil operações – crescimentos de 5% e 0,3%, respectivamente, na comparação com 2020.
Já os empréstimos de curto prazo, destinados, principalmente, ao microcrédito urbano (Crediamigo), entre outros produtos, atingiram o valor de R$ 13,8 bilhões, com acréscimo de 2,8% em relação ao ano anterior, e representaram 33% do valor contratado no ano de 2021.
O Crediamigo é uma das principais linhas de crédito do Banco do Nordeste e, segundo a instituição, é hoje o maior programa de microcrédito orientado da América Latina. Um estudo feito pelo banco mostra que o empreendedorismo está mais presente na vida das mulheres do que na vida dos homens. Em 2021, elas contrataram quase três milhões de operações, que totalizaram R$ 8,5 bilhões em empréstimos. O valor corresponde a 66% do total aplicado pelo programa no ano passado.
A participação feminina é tão representativa que o Banco do Nordeste lançou, em março de 2021, uma linha exclusiva para as mulheres com condições ainda mais favoráveis ao empreendedorismo. Em um ano, o Crediamigo Delas já soma mais de R$ 1 bilhão distribuído em 380 mil operações.
Em Alagoas, por exemplo, o total contratado por mulheres em 2021 representou 68% de todos os créditos desembolsados pelo Programa, somando R$ 357 milhões que abrangeram 125.115 transações.
“Bancões” x fintechs
Alguns grandes bancos têm já uma atuação relevante no microcrédito destinado para a região Nordeste. Bradesco e Santander, por exemplo, têm operações nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba e Pernambuco. Mas nesse meio, as fintechs que oferecem crédito têm avançado rapidamente no Brasil como um todo – e, obviamente, no Nordeste – ao oferecer crédito de maneira mais ágil, desburocratizada, com prazos e taxas muitas vezes bem mais convidativas do que as instituições tradicionais. Some-se a isso uma maior flexibilidade para atender o público que, muitas vezes, tem dificuldade em comprovar qualquer tipo de renda para honrar seus empréstimos.
Um levantamento da plataforma de inovação aberta Distrito, de 2020, identificou 742 startups em operação no Brasil, a grande maioria delas fintechs. Destas, 122 (16,4% do total) atuavam em meios de pagamento. Em segundo lugar, 117 (15,8%) operavam no setor de crédito. E a tendência é que esse número aumente, uma vez que muitas dessas empresas começam a operar em determinados segmentos e evoluem para a oferta de crédito.
Desbancarizados funcionais
Isso porque ainda existe no Brasil um grande número de “desbancarizados funcionais”, nas palavras de Pedro Noll, co-fundador e CMO da startup BoletoFlex. Segundo ele, o auxílio emergencial pago pelo Governo Federal às pessoas com comprometimento de renda durante a pandemia fez com que quase 40 milhões de pessoas consideradas desbancarizadas tivessem que abrir uma conta bancária para receber o benefício. Mas, em sua maioria, os beneficiários utilizam essas contas apenas para receber depósitos e sacar o dinheiro. Não têm, porém, acesso a nenhum outro tipo de serviço financeiro, como empréstimos ou um cartão de crédito.
Fundada em 2019, a BoletoFlex trouxe para o mercado uma nova opção de pagamento para o consumidor: o parcelamento de compras sem uso do cartão de crédito, modelo conhecido no mercado como “compre agora e pague depois” (buy now pay later, BNPL). Além disso, oferece solução de crédito instantâneo para parcelamento de compras online via boleto e anunciou recentemente o lançamento da opção de pagamento parcelado via PIX para compras no e-commerce.
Basicamente, o que a empresa faz é pagar à vista o varejista que está oferecendo um produto ou serviço enquanto parcela o pagamento do consumidor. O site de vendas ibyte, de Fortaleza, é um exemplo de e-commerce que já oferece as soluções de pagamento da BoletoFlex. Para Noll, o Nordeste tem um grande potencial nesse contexto, porque ao mesmo tempo que concentra um contingente relevante de pessoas de baixa renda, também apresenta taxas de inadimplência menores do que outras regiões. Ainda assim, a taxa de inadimplência geral da operação é alta, em torno de 10%. Noll afirma considera esse um índice de “equilíbrio” do negócio, embora admita que a preocupação com ele limite a capacidade de expandir a oferta de crédito.
A solução desenvolvida pela fintech tem como diferencial a elegibilidade de crédito, aprovação instantânea, análise de dados comportamentais com 75% de eletividade, juros acessíveis e a possibilidade de atender tickets de R$ 150 até R$ 20 mil. Instituições tradicionais normalmente costumam aprovar crédito para pessoas que tem um score acima de 600, com base numa escala de pontuação desenvolvida pela Serasa, que vai de zero a 1.000 pontos. A BoletoFlex consegue aprovar parcelamentos para pessoas com score a partir de 200.
Um ponto interessante, revela Noll, é que 70% da base de clientes atuais da empresa está na faixa entre 18 e 35 anos. Isso ocorre, segundo ele, exatamente porque esse público mais jovem tem certa aversão a soluções tradicionais, como o cartão de crédito, exatamente por causa das altas taxas de juros praticadas. Some-se a isso o fato de que esse público mais jovem muitas vezes não tem um histórico de pagamentos que lhe confira um score elegível para crédito.
A empresa tem como foco a população das classes B – principalmente aqueles que já possuem cartão de crédito, mas com limite de compras muito baixos, de até R$ 1.400,00 – e classe C. Embora a BoletoFlex se considere mais uma empresa de tecnologia do que uma fintech, o discurso, como o da maioria das startups financeiras do mercado, é o de democratizar o crédito no Brasil.
Crédito para “fechar” o mês
Carlos Barros, fundador da fintech Jeitto, concorda com a análise de Noll sobre o grande número de pessoas que ingressaram no sistema bancário por conta do auxílio emergencial, mas que nem por isso têm acesso a crédito ou outros serviços. O Jeitto afirma ser hoje um dos principais aplicativos de crédito para classes C e D e pessoas com renda de dois a três salários-mínimos, que estão ascendendo. O aplicativo consegue aprovar três vezes mais que a média de mercado e diz ter uma taxa de inadimplência “condizente ao negócio”. Sem revelar percentuais, Barros admite que ela é alta se comparada à média de crédito geral do mercado, mas esperada para essa faixa de público.
O fundador do Jeitto insiste na importância da educação financeira e da concessão responsável de crédito. “Não queremos criar mais um problema para nosso cliente. Tentamos fazer o cliente entender que o empréstimo é importante, mas que oferecemos condições justas em termos de parcelamento e taxas e que não vão sobrecarregar ainda mais quem está tomando o crédito”, afirma. Todo o modelo é baseado em inteligência artificial e modelos preditivos, por meio dos quais a análise de capacidade de pagamento dos usuários é analisada de forma rápida e com alto índice de precisão.
O aplicativo já conta com uma base de 2,5 milhões de usuários, dos quais 1,25 milhão com créditos aprovados. Essa base vem crescendo a uma taxa de quase 20% ao mês, o equivalente a quase 300 mil novos cadastrados mensalmente, segundo Barros. O Jeitto começou a operar em 2013, inicialmente oferecendo transações mais simples, como recarga de celular com pagamento parcelado. Em seguida, agregou outras soluções, como pagamento de contas, até ingressar na oferta de crédito. O limite de crédito inicialmente ofertado vai de R$ 30 a R$ 250 reais e é normalmente usado pelos tomadores de empréstimo como complemento de renda para honrar com pagamentos. “À medida que a pessoa vai utilizando e demonstra ser uma boa pagadora, nós vamos gradativamente aumentando esse limite de crédito, que pode chegar até R$ 1.500,00”, explica o fundador.
Para Barros, existe uma percepção errada sobre o público-alvo da empresa, que inclui pessoas da classe C e D. “A gente costuma achar que são pessoas gastadoras, que gastam mais do que podem pagar. Mas é o contrário, são pessoas que fazem muitas contas e não abusam. Não é um problema comportamental, é um problema de fluxo de renda”. Uma pesquisa nacional inédita feita pela empresa com mais de 800 clientes cadastrados, com o objetivo de entender melhor o perfil de quem solicita crédito no Brasil, apontou que 35% dos entrevistados utilizam empréstimos do Jeitto para pagar contas de consumo como luz, água e telefone e 55% têm renda fixa mensal entre R$ 1.300,00 e R$ 2.300,00.
A análise registrou também que 73% dos clientes cadastrados já possuem outro cartão de crédito e o utilizam com frequência, porém 74% precisam usar o crédito Jeitto todo mês – 46% contam com o aplicativo para pagar contas e completar a renda. Quando o assunto é divisão por região, o Sudeste leva a maior fatia, com 55% dos clientes com limite de crédito, seguido pelo Nordeste, com 25%, Sul e Centro Oeste com 14% e Norte com 11%. Mais da metade dos perfis cadastrados como clientes Jeitto são pessoas com idade entre 25 e 44 anos.
“Percebemos que a grande concentração de pessoas que necessitam de crédito para conseguir manter as contas em dia está entre o início da vida adulta e a fase da busca por estabilidade. Isso deixa claro o quanto a educação financeira é necessária e nós estamos aqui não só para gerar oportunidades, mas também mostrar que é preciso agir de forma consciente”, conclui Barros.