Por José Fucs
Para O Estado de S.Paulo
Entrevista com Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro e economista-chefe do banco BTG Pactual
O economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional e hoje economista-chefe do banco BTG Pactual, domina como poucos o orçamento do governo e costuma ter os números na ponta da língua. Por seu perfil técnico, Mansueto, de 54 anos, tornou-se um dos nomes mais respeitados do mercado quando o que está em jogo são as finanças públicas.
Nesta entrevista ao Estadão, ele traça um quadro detalhado da situação fiscal do País e diz que o resultado das contas governamentais em 2021 superou, de longe, as previsões catastrofistas feitas pela maioria absoluta de seus pares. “A gente terminou 2021 com números muito melhores do que os esperados por qualquer economista, inclusive os mais otimistas, não um ano atrás, mas seis meses atrás”, afirma.
Segundo Mansueto, porém, “o mercado está nervoso”, apesar das boas notícias na área fiscal, em razão da possibilidade de haver novos “furos’ no teto de gastos e do discurso de “alguns candidatos” à Presidência contra a medida. “A gente está no seguinte dilema hoje: ou a narrativa vai se aproximar da realidade ou a realidade vai se aproximar da narrativa e a visão de que as coisas estão ficando muito ruins vai se consolidar.”
Mansueto fala também sobre a “reancoragem” das expectativas com a alta dos juros promovida pelo Banco Central, as perspectivas da economia para este ano, a alta dos investimentos na produção em 2021 e os desafios que o País tem pela frente para seguir o caminho do desenvolvimento sustentável. “Do ponto de vista estrutural, com as reformas que o País fez nos últimos anos, o cenário melhorou muito”, diz. “Mas o Brasil ainda tem um ajuste fiscal para fazer, para colocar a dívida pública numa trajetória de queda.”
Mansueto Almeida: nível da dívida pública ‘não é o fim do mundo’, mas o desafio é fazê-la declinar a partir de 2023. Foto: Dida Sampaio/Estadão – 19/11/2020
Nos últimos tempos, muitos analistas têm feito previsões catastróficas sobre a situação fiscal do País. Dizem que as contas públicas saíram de controle, que o apocalipse vai chegar e coisas do gênero. A situação fiscal está tão ruim quanto dizem por aí?
Olhando a situação fiscal hoje, a gente terminou 2021 com números muito melhores do que os esperados por qualquer economista, inclusive os mais otimistas, não um ano atrás, mas seis meses atrás. A expectativa no início do ano era de um déficit primário do setor público (receitas menos despesas, sem os juros da dívida), incluindo Estados, municípios, estatais e governo federal, de R$ 250 bilhões. Mas a gente fechou o ano com um superávit primário entre R$ 20 bilhões e R$ 40 bilhões – o primeiro desde 2013 – equivalente a algo entre 0,2% a 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto). Agora, em 2022, este resultado não deverá se repetir. A estimativa é de um déficit de R$ 76,8bilhões. Ainda assim, se somarmos o resultado de 2021 com a estimativa para 2022, vai dar um déficit muito, muito baixo. O déficit primário para o biênio 2021/2022 deverá ficar em torno de R$ 30/35 bilhões. Não é nada. Mesmo que venha um número pior, ainda vai ser um déficit baixo. Na crise de 2015 e 2016, o déficit foi bem mais alto. Somando os dois anos, o déficit chegou a R$ 267 bilhões em valores da época. Em 2015, o déficit primário do setor público foi de R$ 111 bilhões em 2015, em valores históricos, o equivalente a 1,9% do PIB, e em 2016, de R$ 156 bilhões ou 2,5% do PIB.
Isolando os resultados do governo federal e dos Estados e municípios em 2021, como é que ficam os números?
Os Estados e municípios devem ter terminado 2021 com um superávit na casa dos R$ 100 bilhões, provavelmente o melhor resultado fiscal desde 1991. As estatais, com superávit de R$ 4 bilhões. O governo federal ainda deve ter fechado o ano com um déficit primário de R$ 66 bilhões. Para 2022, a estimativa para o governo central é de um déficit um pouco maior, de R$ 88,9 bilhões, equivalente a 0,8% do PIB, mas ainda relativamente baixo também.
Com a alta da Selic (taxa básica) em 2021, como ficou o déficit total, incluindo os juros da dívida pública? Subiu muito?
A Selic terminou 2021 em 9,25% ao ano, mas a taxa média ficou bem abaixo disso. Com a inflação em torno de 10%, a gente ainda fechou o ano com juro negativo, como já havia acontecido em 2020. Pelos meus cálculos, a gente terminou 2021 com um déficit nominal, que é o déficit primário mais a conta de juros, em torno de 5% ou menos do PIB, o equivalente a cerca de R$ 410 bilhões, que é um dado bom, também o melhor desde 2013. Então, a gente fechou 2021 melhor do que antes da pandemia, tanto em termos de resultado primário como de resultado nominal. Em 2019, o déficit nominal foi equivalente a 6% do PIB. Em 2015, chegou a 10,2% do PIB ou cerca de R$ 600 bilhões em valores absolutos. Em 2016, o déficit foi de 8,98% do PIB ou R$ 560 bilhões.
Para fechar o capítulo dos dados fiscais, como ficou, afinal, a dívida pública em 2021? Tinha gente graúda por aí fazendo projeções sinistras, dizendo que iria passar de 100% do PIB.
Nas minhas contas, o Brasil fechou 2021 com uma dívida bruta inferior a 81% do PIB, também muito mais baixa do que se projetava. Em 2019, antes da pandemia, a dívida bruta era de 74,2% do PIB. No caso da dívida líquida, que não inclui empréstimos para bancos públicos e reservas internacionais, o resultado ficou em 56,6% do PIB, só dois pontos do acima da de 2019. Em 2020, no auge da pandemia, a dívida líquida chegou a 62,5% do PIB. Neste ano, como os juros subiram muito, ela vai ter um crescimento grande, para 62% do PIB. Vai ficar mais ou menos igual à de 2020. Agora, em 2013, quando a gente começou a ter uma piora fiscal forte, a dívida líquida era de 30% do PIB. Então, de 2013 a 2022, um período de nove anos, a dívida líquida duplicou. É o fim do mundo? Não. O desafio agora é fazer essa dívida declinar, para, numa próxima crise o setor público ter espaço para gastar mais, como todo país do mundo faz. Não vamos nos enganar. Uma dívida bruta de 81% do PIB é muito menor do que a gente esperava, mas para um país emergente é uma dívida alta. O endividamento médio dos países emergentes é de 60% do PIB. Além disso, a maior parte da nossa dívida é de curto prazo. Isso significa que, em ano de juro alto, o serviço da dívida aumenta muito rápido.
O que explica esse resultado positivo em 2021, que derrubou as previsões dos economistas?
Uma das grandes surpresas de 2021 foi a velocidade de recuperação da arrecadação. A arrecadação líquida do governo central, de 2017 a 2019, foi de 17,5% do PIB por ano. Em 2020, primeiro ano da pandemia, a arrecadação caiu para 16,2% do PIB. O governo central perdeu 1,3 ponto do PIB de arrecadação. Em 2021, pensava-se que seria muito difícil para o governo recuperar essa arrecadação. As projeções do próprio Tesouro Nacional, e eu estava lá nessa época, diziam que levaria três ou quatro anos para o governo recuperar a arrecadação que havia perdido. Mas, no fim, em 2021, a arrecadação do governo central deve ter ficado maior até do que no período pré-pandemia, perto de 18% do PIB. Já os Estados, além do ganho que tiveram com a recuperação da economia, foram beneficiados com o aumento de preços de alguns produtos que são importantes para a receita, como energia e combustível, que representam 30% da arrecadação total de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
E do lado das despesas, o que aconteceu?
O que aconteceu foi que, em 2021, a gente teve uma despesa primária no nível do pré-pandemia, de 19,5% do PIB. Nenhum país do mundo conseguiu isso. No Brasil, com todo o estímulo dado em 2020, a despesa voltou a ser o que era em 2019, antes da covid. Isso é mérito do teto, porque todo o ganho de arrecadação, a receita líquida do governo central, não virou gasto. Ao mesmo tempo, os Estados foram beneficiados pela contenção de despesas com pessoal. O gasto com pessoal nos Estados chega a 60 a 70% do total e os salários dos servidores ficaram congelados por dois anos, em 2020 e em 2021, por exigência do governo federal na época em que foi feito o socorro para a pandemia. Isso representou uma economia brutal para os Estados, ainda mais num contexto de inflação acumulada de quase 15% nos últimos dois anos.
Tem outra questão que favoreceu os Estados: nesse período, também não houve contratações e vários Estados fizeram a reforma da Previdência, reduzindo ainda mais as despesas.
Exatamente. Vale lembrar que os Estados que fizeram reforma da Previdência também aumentaram a contribuição dos servidores para o sistema e tiveram um ganho de arrecadação também por aí. Isso foi muito importante. Vários Estados e municípios fizeram reforma da Previdência nos últimos anos. Do ponto de vista estrutural, hoje a situação é muito melhor do que a que gente tinha antes. O Brasil conseguiu fazer uma reforma da Previdência e os Estados, também.
Em sua avaliação, por que as previsões dos economistas deram tão errado? Eles não olham os números?
Olham, sim, mas o pessoal estava com medo de que a situação se deteriorasse. O mercado está nervoso. A mudança do teto para viabilizar o Auxílio Brasil impactou muito o mercado. Havia uma expectativa de que o governo tivesse um gasto adicional, extrateto, e que ele tentaria justificar isso como uma necessidade da pandemia. A expectativa era de que a coisa seria temporária e não viraria um gasto permanente. Só que não foi o que aconteceu. O mercado também não esperava que eles fossem mudar o indexador do teto, que era apurado de julho a junho e agora passou a ser calculado pelo ano “cheio”. Houve ainda a saída dos dois secretários da Fazenda (Bruno Funchal, ex-secretário Especial do Tesouro e Orçamento, e Jeferson Bittencourt, ex-secretário do Tesouro). Quando isso aconteceu, o mercado reagiu muito mal. A Bolsa caiu, a curva de juros subiu e o dólar disparou. Essa mudança do teto no fim do ano foi muito tumultuada, mal comunicada. O mercado se assustou não tanto com o tamanho da mudança, com a aprovação dos R$ 110 bilhões de gastos acima do teto, mas com os sinais que foram dados.
A que sinais o sr. se refere?
A percepção do mercado foi a seguinte: “Se é tão fácil mudar a Constituição quando eles querem aumentar o gasto, o que garante que não vão tentar mudar novamente daqui a um, dois ou três meses, para afrouxar ainda mais as regras fiscais?”. O mercado também se assusta muito com o discurso de alguns candidatos contra o teto, sem falar o que vão colocar no lugar. O resultado disso tudo é que a gente terminou 2021 num cenário atípico. Os números são muito melhores do que o mercado esperava, mas a percepção de risco fiscal, de que o teto pode ser modificado novamente ou de que um próximo governo pode não respeitar o teto, piorou.
Teve ainda a questão do parcelamento dos precatórios, que pegou muito mal também.
Esta foi outra surpresa que mexeu com a percepção do mercado. O precatório era uma conta de R$ 30 bilhões em 2016 e chegou a R$ 55 bilhões em 2021. Era uma conta que crescia R$ 5/6 bilhões por ano e, para 2022, o governo estava projetando um gasto de R$ 61 bilhões. Só que, quando recebeu a conta da Justiça, veio um valor muito maior, de R$ 89 bilhões, ou seja, R$ 34 bilhões acima do que foi pago em 2021, o que representava um crescimento de 61%. Quando o ministro da Economia (Paulo Guedes) contou isso numa palestra no fim de julho, a magnitude do crescimento surpreendeu todo mundo. O mercado viu logo que eles teriam de fazer alguma coisa, postergando o pagamento dos precatórios ou pagando fora do teto, para arranjar uma forma de aumentar o Bolsa Família, se não a conta não iria fechar. A forma de encaminhar isso também foi muito ruim. Cada hora o governo falava uma coisa diferente e as declarações da equipe econômica não batiam com o que a gente lia nos jornais da própria área política do governo e às vezes até do próprio presidente. Isso criou muita incerteza no mercado, uma falta de farol, que machucou bastante os preços dos ativos.
Mesmo considerando tudo isso, tem uma disparidade enorme entre a narrativa dominante no mercado e a realidade dos números que o sr. apresentou.
Tem. A gente está no seguinte dilema hoje: ou a narrativa vai se aproximar da realidade ou a realidade vai se aproximar da narrativa e a visão de que as coisas estão ficando muito ruins vai se consolidar. Agora, a arte da política econômica, além dos dados, é também expectativa, comunicação. É mostrar credibilidade. Não adianta falar que a percepção do mercado foi certa ou errada. O fato é que o mercado se assustou e a gente tem de trabalhar com a realidade.
O que chama a atenção também é que, apesar dessa melhora na situação fiscal, com um aumento grande de arrecadação, a economia não está decolando. O que explica isso?
A gente precisa voltar um pouco no tempo para entender melhor o que está acontecendo. No fim de 2020 e no início de 2021, a economia se recuperou muito rápido. No fim do primeiro trimestre de 2021, o PIB já estava no mesmo nível do pré-pandemia. Foi um PIB muito forte, que praticamente determinou o crescimento para o ano todo. Depois da forte queda da atividade econômica no primeiro semestre de 2020, a economia começou a se recuperar no segundo semestre e essa recuperação trouxe um efeito positivo para 2021, que se manteve no primeiro trimestre. A gente terminou agora o ano com um crescimento do PIB de 4,5% muito em função do que foi o primeiro trimestre. Aí, no segundo e no terceiro trimestres, a atividade econômica caiu um pouquinho, mas mesmo assim a recuperação foi muito forte. Só que, de repente, veio uma outra surpresa muito grande, no Brasil e no resto do mundo, com a alta da inflação. A inflação em 12 meses no Brasil chegou a 10,7% e nos Estados Unidos, a 6,7%. O problema é que aqui, como a inflação aumentou muito e o Banco Central está tendo de aumentar os juros, isso puxou o PIB para baixo. Em 2022, a nossa projeção é de crescimento zero para o PIB. Algumas instituições esperam uma queda de 0,5% e outras, crescimento de 1%. A maioria das projeções está neste intervalo, de -0,5% a 1%.
De qualquer forma, será um resultado ruim, para um país emergente como o Brasil. Muita gente chama de “pibinho”…
A gente tem que definir um pouco o debate. Do ponto de vista de curto prazo, a política monetária restritiva, para trazer inflação para a meta, tem impacto no crescimento. Infelizmente, é o preço que vamos ter de pagar para conseguir “reancorar” as expectativas, como a gente diz. A notícia boa é que, se o Banco Central conseguir reancorar as expectativas e a inflação esperada para 2023 voltar para a meta ou ficar abaixo da meta, talvez o ciclo de aumento de juros seja mais curto. Aí, talvez, a gente possa ter, eventualmente, um segundo semestre melhor neste ano. Se a gente tivesse os sinais de que o fiscal vai continuar a ser uma prioridade, os preços dos ativos já estariam bem melhores e a curva de juros e o câmbio, mais calmos.
Olhando mais para a frente, a partir de 2023, como o sr. vê o cenário para a economia?
Tem algumas coisas positivas e alguns riscos, que podem se tornar um fardo ou um benefício. Quais são as coisas positivas? Nos últimos cinco anos, o Brasil fez muitas mudanças boas em marcos regulatórios e, apesar de todo esse ambiente de incerteza e da pandemia, as concessões andaram. Nos próximos três ou quatro anos, os investimentos em telecomunicações, com o 5G, e em saneamento, com o novo marco regulatório e o início das concessões pelas empresas estaduais, vão aumentar de forma significativa. A mesma coisa deverá acontecer com as ferrovias e o transporte de cabotagem, que também tiveram mudanças regulatórias, e com as novas concessões de portos e aeroportos.
O ministro Paulo Guedes fala R$ 700 bilhões de investimentos em infraestrutura já contratados nos próximos dez anos.
Eu não sei qual é o número, mas o mais importante é a direção – e tudo isso é algo muito positivo. A gente está conseguindo contratar um fluxo de investimento de longo prazo em infraestrutura, que não depende do cenário do momento. O sujeito tem de tomar a decisão agora – e é uma decisão de 30 anos. Ou ele entra no jogo na data do leilão ou não entra mais. Em 2022, por exemplo, a gente vai ter a concessão de 16 aeroportos, inclusive Congonhas, em São Paulo, e Santos Dumont, no Rio. Eu já conversei com vários grupos estrangeiros que estão dispostos a entrar nos leilões. Essas mudanças de marco regulatório no Brasil, com apoio do Congresso, muitas vezes até com apoio de alguns partidos de esquerda, e a adoção de novas regras para as concessões melhoraram muito o cenário. Em 2012, quando a gente mudou o marco regulatório do setor elétrico, houve vários leilões de linhas de transmissão em que não apareceu nenhum interessado. Aí, as estatais entravam com crédito subsidiado do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), para viabilizar a concessão. Não é o caso agora. Hoje, leilão de linha de transmissão está saindo, leilão de contratação de ferrovia, também, tudo está andando bem. No fim do ano passado, a gente teve um leilão de concessão de serviço de saneamento no interior de Alagoas que foi um bom exemplo do que está acontecendo. Eram dois blocos. Num bloco, o valor mínimo de outorga era de R$ 36 milhões. A companhia que venceu deu um lance de mais R$ 1,2 bilhão. O segundo colocado no leilão deu um lance de R$ 1 bilhão.
Na área de petróleo, parece que as perspectivas para os próximos anos também são positivas.
Quando eu estava no governo, eu pedi para a ANP (Agência Nacional de Petróleo) passar para mim a previsão da produção de petróleo nos próximos anos e as perspectivas são muito promissoras. O Brasil vai ter um aumento muito forte de produção, de 25% a 30%, na segunda metade desta década, a partir de 2025, em decorrência de investimento já feito no pré-sal. Para a produção de petróleo do Brasil não aumentar, a gente teria de destruir investimento que já aconteceu. O impacto disso na receita vai ser brutal, porque no pré-sal o governo tem uma participação na venda do barril de petróleo. Com o aumento da produção, a arrecadação de impostos também vai subir muito. A estimativa que a gente fazia quando eu estava no governo era de que, com isso, o ganho de arrecadação até o fim desta década será de 1% a 1,5% do PIB. No agronegócio, está ocorrendo um movimento semelhante. O volume de investimentos em 2021 foi muito alto. Segundo um trabalho que o Ministério da Agricultura apresentou há três meses, a produção de grãos no Brasil até o fim da década deverá aumentar também entre 25% e 30%. Aí, o que vai acontecer com serviços e indústria vai depender muito das reformas que a gente conseguir fazer pela frente. Mas, do ponto de vista estrutural, com as reformas que o Brasil fez nos últimos anos, o cenário melhorou muito. Essa confusão toda, de a gente ter uma economia praticamente estagnada em 2022, é uma coisa conjuntural. No mundo todo, a política monetária, quando entra no que a gente chama de “zona restritiva”, para trazer inflação para a meta, tem impacto em crescimento. A desaceleração de 2022 não é algo estrutural.
Quando esse quadro que o sr. está traçando para os investimentos deve começar a produzir efeitos concretos na economia?
Isso, de certa forma, já está acontecendo. Em 2021, a taxa de investimento já deve ter fechado com um crescimento de mais ou menos 15%, em 19% do PIB, bem acima dos 16,4% de 2020 e dos 15,4% de 2019. Em 2021, o Brasil teve um boom de investimento no setor agrícola e na construção civil. Você teve vários produtores de bens de capital para o setor agrícola que pagavam ao cliente para adiar o pedido, para ele entrar na fila de espera e dar preferência a outros. Em vários setores em que o marco regulatório melhorou, o investimento ficou bem mais atraente. A gente não está na situação de 2014, 2015, 2016 e 2017, quando a taxa de investimento caiu 30%. Em 2015, a taxa de investimento ficou em 13,5% do PIB. Em 2016, em 12% do PIB. Em 2017, mesmo com a volta do crescimento, a taxa de investimento caiu mais 3,5%. Agora, não. Em 2020, o PIB caiu 4%. Qual foi a queda da taxa de investimento? 0,5%, quase não caiu. E, desta vez, as empresas foram ao mercado, lançaram títulos privados, ou fizeram abertura de capital ou venderam mais ações. A gente teve uma pandemia, uma queda de PIB forte em 2020, e não teve nenhum programa de banco público para empresa grande.
Esta, aliás, foi outra grande transformação que ocorreu nos últimos anos, com a desinflada do BNDES e o fim do dinheiro subsidiado para financiar as “campeãs nacionais”.
O que aconteceu no Brasil é que a gente melhorou o mecanismo de financiamento às empresas privadas. No passado, em todas as crises que o Brasil passou tinha que colocar banco público para socorrer empresa privada, para não deixar quebrar. No primeiro governo Dilma, entre 2011 e 2014, o BNDES emprestou em média 4% do PIB, mais de R$ 300 bilhões subsidiados por ano. Nos últimos anos, o BNDES emprestou R$ 60/70 bilhões. Em 2016, a captação direta via mercado de capitais, que inclui operações de abertura de capital, lançamentos secundários de ações e lançamento de debêntures, foi de R$120 bilhões. Em 2021, de janeiro a novembro, chegou a R$ 507 bilhões, quatro vezes mais. Então, hoje o cenário é muito diferente. É um ambiente muito mais saudável, em que o financiamento das empresas depende menos do setor público, do espaço orçamentário, do que antes. Isso foi também foi muito positivo. Antes, o governo tinha ainda os gastos com a equalização de juros, para cobrir a diferença entre as taxas subsidiadas cobradas pelo BNDES nos empréstimos e as taxas de captação do Tesouro. Isso acabou no governo Temer, quando a gente criou a TLP (Taxa de Longo Prazo), que é próxima às taxas de mercado, para indexar os contratos do BNDES. Outro dia, eu estava olhando os dados do orçamento aprovado no fim do ano e vi que, em 2022, havia lá, se não me engano, de R$ 500 milhões a R$ 700 milhões alocados para equalização de juros, basicamente de resíduo das operações feitas com subsídio no passado. Em 2015 e 2016, o gasto com equalização de juros para cobrir esses subsídios chegou a R$ 13 bilhões de despesa primária, competindo com saúde e educação.
O sr. disse que o País tem pela frente alguns pontos positivos e alguns riscos, mas no fim só falou das coisas boas. Quais seriam os riscos?
Há uma coisa muito importante para o futuro, com a qual o presidente que assumir em 2023, quem quer que seja, terá de lidar. O Brasil ainda tem um ajuste fiscal para fazer. Há um grupo de políticos e economistas que se colocam contra o teto de gastos. O teto de gastos foi uma tentativa de fazer ajuste fiscal de uma forma muito gradual, não cortando imediatamente a despesa, mas controlando o seu crescimento. A decisão de mantê-lo ou não é um debate político legítimo. As pessoas não precisam concordar com o teto. A gente tem de respeitar visões diferentes. Tem políticos e economistas que dizem que querem que o governo tenha mais flexibilidade de gastos.
Que ajuste fiscal seria esse?
Se a gente quiser fleixibilizar o teto, dado que ainda tem de fazer um ajuste fiscal, vai precisar ter superávit primário, para colocar a dívida bruta e a líquida, no próximo governo, em algum momento, numa trajetória de queda. O Brasil teve superávit primário do setor público em 2021, mas em 2022 voltará a ter déficit primário. Será um déficit pequeno, de 0,8% do PIB, como eu falei, mas nos próximos anos a gente vai precisar ter um superávit primário de pelo menos 2 pontos do PIB de forma consistente, para reduzir o nosso endividamento. O ideal seria limitar o déficit a 2022. Se isso não acontecer, a gente pode terminar o próximo governo com a dívida crescendo nos quatro anos de mandato do presidente, dependendo da simulação que você fizer de crescimento de PIB e de evolução da taxa de juro, que incide sobre a dívida pública. Algumas pessoas falam que outros países do mundo têm uma dívida maior. O problema é que, no Brasil, você não consegue financiar a dívida pública com juro real negativo. Os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão e o Reino Unido conseguem. Aqui para vender um título de 10 anos com juros prefixados a gente paga um juro real de 7% ao ano, o que faz a dívida crescer muito mais rápido.
Qual é a mágica para conseguir aumentar os gastos e reduzir a dívida pública ao mesmo tempo?
Se a gente quiser ter um crescimento real da despesa do governo, de 1%,1,5% ao ano, o que for, vamos ter de discutir arrecadação – e aí é preciso tomar dois cuidados. O primeiro é que o Brasil já tem uma carga tributária alta. A carga tributária do Brasil hoje é de 33% do PIB, igual à da Inglaterra. A média na América Latina é de 23% do PIB. E, para discutir arrecadação sem aumentar carga tributária, a gente vai ter de mexer em benefícios especiais, o que não é fácil. Não sei o que é mais difícil, se é aumentar imposto ou cortar benefício tributário. Hoje, os benefícios tributários projetados para 2022 chegam a R$ 371 bilhões. Se você tirar o Simples da conta, que representa R$ 81 bilhões, ainda vão sobrar benefícios tributários de quase R$ 300 bilhões. Nós vamos ter de mexer em uma parte disso para ter um cenário em que o mercado enxergue que o superávit primário vai voltar mais rápido. O desafio, num país em desenvolvimento que gasta tanto como o Brasil, é tentar controlar o crescimento de gasto e mudar a regra de despesa obrigatória. No Brasil, para a gente conseguir atender a demanda da população, com mais distribuição de renda e menos pobreza, mais segurança social, a gente tem de mudar a composição do gasto público.
Para a gente concluir, gostaria de uma palavra sua sobre o orçamento. Hoje, muitos economistas estão falando em “captura do orçamento”, que é uma expressão supernegativa, para se referir à participação crescente do Congresso na definição dos gastos. Agora, eu lembro de uma entrevista que o ministro Paulo Guedes deu ao Estadão, a primeira depois da posse, em que ele dizia que os políticos deveriam decidir a destinação de 100% do orçamento. Como o sr. encara essa questão?
Antes de mais nada, é preciso dizer o seguinte: o orçamento do Brasil, hoje, continua com os mesmos problemas de quatro anos ou de dez anos atrás. Na verdade, em relação a 10 anos atrás até piorou. A gente tem uma proporção muito grande do orçamento que é despesa obrigatória. A peça mais importante de uma democracia, da República, é o orçamento. É por meio da discussão orçamentária que a sociedade estabelece as prioridades do gasto, o que é mais importante para o País no ano seguinte. Não é o caso do Brasil, porque, de cada R$ 100 do orçamento, R$ 94 já estão com o destino pré-definido. A gente passa seis meses discutindo o orçamento, para definir como serão alocados 6% de toda a despesa orçamentária. Nenhum país do mundo tem um engessamento tão grande do orçamento. Outro problema é que, ao longo dos anos, no pós-Constituição de 1988, houve uma desconfiança muito grande na gestão de prefeitos e governadores. Então, desde a Constituição, tentou-se estabelecer regras para que todos tenham de gastar um mínimo com essa área, com aquela área, com aquela outra. Será que a gente pode dar mais responsabilidade para cada governante alocar o orçamento de acordo com as suas prioridades e para o Congresso também? Esta é uma discussão que, em algum momento, a gente terá de fazer. Eventualmente, se houver má alocação, que os responsáveis sejam penalizados pelo eleitor na eleição seguinte.
Em relação às emendas parlamentares, especialmente as chamadas “emendas do relator”, qual é a sua visão?
Desde a discussão do Orçamento de 2020, no segundo semestre 2019, foi criada essa figura da emenda do relator, com apoio do governo. Hoje, o valor das emendas individuais de bancada está na casa de R$ 18 bilhões. O que que precisa ser feito aí, em linha com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a questão, é dar muito mais transparência a essas emendas. Tem que se dar transparência, como qualquer coisa no gasto público. Agora, se o valor para as emendas do relator será de R$ 1 bilhão, de R$ 2 bilhões ou de R$ 18 bilhões é uma decisão política. Só que hoje a gente tem um Congresso que está com um total de execução de emenda de mais de R$ 35 bilhões. A execução de emenda no governo Temer era de R$ 15 bilhões. Hoje, o Congresso controla uma parcela muito maior da verba pública via emendas. Não cabe a mim julgar se é certo ou errado, mas dizer que a gente deve ter mecanismos de execução dessas emendas que sejam os mais transparentes possíveis e que haja alguma lógica para definir do que é prioritário.