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8 de maio de 2024 15:42

Série especial: Sandália Xô Boi une regionalismo e empreendedorismo que movimenta a economia de Alagoas

Série especial: Sandália Xô Boi une regionalismo e empreendedorismo que movimenta a economia de Alagoas

Primeira reportagem da série exclusiva mostra como a sandália sertaneja envolve cadeia produtiva em um processo cheio de significado

O pé do sertanejo alagoano quase sempre carrega um calçado de couro, a famosa Xô Boi, que une conforto e regionalismo. Antes vista como indumentária de trabalho rural, a sandália tem sido ressignificada pelo mercado da moda, atraindo novos clientes tanto com os modelos tradicionais, quanto com releituras modernas.

No Mercado do Artesanato, em Maceió, é possível encontrar Xô Bois com tantas cores e texturas que parecem formar um quadro de arte. As variadas opções atraem um público de todas as idades, como é o caso da pequena Mariana Gomes, que vai comemorar o aniversário de 1 aninho trajada de Maria Bonita: “toda no estilo”, ressalta a mãe Ana Raphaela Gomes.

Foto: Tallyta Marques | Investindo por aí

Com Mariana em seu colo, Raphaela se diverte vendo a filha brincar com a nova sandália de couro. A mãe, que já tinha procurado os calçados no Pontal da Barra, conhecido como bairro das rendeiras, veio ao mercado procurar o produto na loja que já conhecia. Os olhinhos atentos da criança já parecem entender a valorização do artesanato local, sentimento que está sendo passado de geração em geração na família.

“É uma forma de valorizarmos o nosso artesanato, acho que muitas pessoas deixam isso passar e nós temos tanta coisa rica, legal e bonita no nosso estado. Minha mãe gosta muito dessas peças locais, mais artesanais, creio que puxei isso dela. Lá em casa a gente tem algumas peças como a namoradeira, então é uma coisa que vem da família. Minha mãe passou isso pra mim e pretendo passar pra Mariana, espero que ela também goste de produtos artesanais e que valorize da melhor forma”, destacou Ana.

Tallyta Marques | Investindo por aí

Simbolismo que orgulha

Para a professora Pollyanna Isbelo, do curso de produção de moda da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), a Xô Boi integra a estética nordestina, com o simbolismo de figuras históricas do cangaço – assim como a que Mariana vai representar em seu primeiro aniversário.

“Essa estética faz parte do imaginário coletivo sobre a moda sertaneja  que foi construída a partir das narrativas da mídia. A iconografia e os trajes traduzem a imagem sertaneja do herói/heroína forte e valente, capaz de superar as adversidades, tendo, sobretudo, as referências de Lampião e Maria Bonita como representações do homem e da mulher do Nordeste em meio às suas lutas diárias de sobrevivência”, destacou a professora.

As mãos cuidadosas de Seu Adilson

O amontoado de Xô Bois, máquinas de costura e retalhos de couro coloridos dão vida à pequena fábrica de José Adilson Tavares, 61 anos, artesão que com mãos hábeis começou a trabalhar na fabricação de calçados ainda na adolescência, com 13 anos de idade, em Arapiraca, no agreste do estado.

José Adilson | Acervo pessoal

Adilson conta um pouco da história do seu ofício que ajudou a sustentar seus 2 filhos e hoje mantém os seis funcionários da fábrica que confecciona cerca de 800 pares de Xô Bois por mês.

“Tudo começou na minha cidade, onde havia um fabricante: Seu Pedro Deocleciano, conhecido como PDO da calçadeira. Trabalhei por lá até os oito anos de idade, fazendo calçados finos. Depois viajei para São Paulo, onde aprendi mais e me especializei onde exportavam esses calçados. Com o tempo, trabalhei em outras fábricas também, mas sempre no intuito de voltar para minha cidade de Arapiraca, porque o nordestino é assim: ele pode até sair, mas um dia quer voltar para sua terra”, conta.

Com nostalgia, Adilson remexe no peito as lembranças das dificuldades enfrentadas ao voltar à cidade natal para iniciar o próprio negócio com apenas 21 anos. Até tentou exercer outras profissões, mas a habilidade de fabricar calçados foi maior que ele, enxergando na Xô Boi e outros calçados de couro a possibilidade de gerar renda e permanecer na sua terra.

“Não foi fácil esse início, trabalhei um bocado em São Paulo e vim tentar a vida em Arapiraca. Fiquei um ano tentando fazer outras coisas, não consegui, mas Deus me deu esse dom de trabalhar com calçados. Vi que a região trabalhava muito com Xô Boi e aí pensei em tentar fazer esse tipo de calçado”, conta o artesão.

Ao falar do seu carro-chefe de vendas, Adilson compartilha um pouco sobre a produção do calçado que não é simples de se fazer. “A Xô Boi é um calçado artesanal muito trabalhoso, é o mais trabalhoso que fazemos por aqui, pega 16 peças num par de Xô Boi”, enfatiza.

Tallyta Marques | Investindo por aí

Para dar vida à sandália, Adilson primeiro faz a compra do couro, que geralmente vem de outros estados, como Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco e Bahia. Depois que o material chega, é hora do corte. A alta demanda fez com que ele comprasse novas máquinas para otimizar o tempo do trabalho.

“Antigamente a gente trabalhava com tudo manual, mas a gente comprou um balancinho, que é uma máquina que ajuda a gente no corte das peças. Depois disso, vamos para o pesponto que é a costura do calçado, a preparação, aí vem a montagem que é outro trabalho muito pesado. Não é fácil, a gente pega o calçado assim e acha que ele é fácil, mas não é. Depois de pronto, vem a parte de lixar o calçado e a da limpeza, olhando se tem algum defeito”, explica José.

Depois de todo o processo, com um olhar cuidadoso na produção de cada peça, que é única, chega a parte da entrega. O artesão arapiraquense vende para a própria cidade e municípios vizinhos, mas o foco mesmo é a capital alagoana. “Por incrível que pareça, já forneço há 27 anos para Maceió e graças a Deus venho ganhando o pão de cada dia por aí. O Mercado do Artesanato é onde temos uma demanda de venda maior”, ressalta.

Para Adilson, a Xô Boi é um símbolo nordestino e, ao longo do tempo, rompeu com preconceitos, indo além do campo e ganhando espaço na cidade. A peça, antigamente taxada como masculina, ganhou novos tons e cores e também caiu no gosto do público feminino.

“Antes existia preconceito principalmente pelo lado feminino, mas quando comecei a fazer elas coloridas deu muito certo. Antes era uma cor padrão, só a cor natural que é esse calçado feito do couro do bode, hoje tenho aqui na minha fábrica 63 opções de cores diferentes, cada uma mais linda que a outra, e as mulheres só querem isso agora, elas gostam muito, muita gente tá usando!”

Zé de Miro e sua produção familiar 

Outro artesão arapiraquense que também trabalha na confecção do calçado é José Nivaldo da Silva, 62 anos, mais conhecido como Zé de Miro.

Para Zé, a sandália também é o carro-chefe da sua fábrica e significa muito em sua vida. “Trabalho com Xô Boi há muito tempo, é a que eu mais produzo e a que vende mais. Ela significa muita coisa pra mim porque eu consegui construir uma família e realizar meus sonhos através dela, através dessa produção de calçado. Para mim é um orgulho trabalhar com esse tipo de mercadoria”, destacou.

Miro começou a trabalhar com o pai desde cedo, aos 10 anos, que fazia Xô Boi e algumas “sandalinhas diferentes”, como ressalta. Após anos aprendendo e trabalhando, mesmo com o falecimento do pai, Zé continuou o ofício que é tradição, passado de geração em geração na família. Com o lucro das vendas, ele criou os três filhos, construiu sua casinha e seu salãozinho para trabalhar. Uma vida inteira de dedicação à produção de Xô Boi e outros calçados de couro. A produção, além de artesanal, é familiar, trabalham com ele dois irmãos, uma irmã e um sobrinho no salão que fica perto de casa.

Tallyta Marques | Investindo por aí

“Cada um faz um tipo de etapa: um corta, um costura, outro monta a Xô Boi até ficar pronta. Eu mesmo que fabrico e vendo, fabrico durante a semana e no final de semana viajo pra vender. Xô Boi todo cliente gosta, os jovens usam também. Todo comércio tem uma época melhor e uma época mais fraca, na época junina a gente vende bastante, tanto a de adulto quanto as infantis. O pessoal das escolas também compra bastante quando tem quadrilha”, explica Zé.

Assim como Adilson, Zé vende bastante para o Mercado do Artesanato, em Maceió, e em feiras livres de algumas cidades do sertão de Alagoas. Também viaja algumas vezes para vender e comprar material em Caruaru e Aracaju. Pela tradição, Zé mantém o carimbo com o nome da cidade de Batalha, apesar de trabalhar na cidade de Arapiraca. “Hoje em Batalha não tem praticamente ninguém que faça Xô Boi mais”, finaliza.

Uma Rosa nordestina

Uma das lojas do Mercado do Artesanato que recebe tanto as Xô Bois de Adilson quanto as de Zé de Miro é a banca de Rosa Maria dos Santos, existente há mais de 8 anos. Rosa, natural de Anadia, morou grande parte de sua vida em Maceió, quando veio com os pais para a capital.

O sorriso convidativo e a simpatia da vendedora não negam que escolheu muito bem sua profissão. Rosa antes havia trabalhado como vendedora e também auxiliado na loja de artesanato da irmã, no mercado da Pajuçara. Foi então que percebeu a paixão em atender as pessoas e a vontade de abrir o próprio negócio.

Tallyta Marques | Investindo por aí

“Quis trabalhar para mim mesma dentro do artesanato porque gostei de trabalhar com o público. Assim que abri a minha loja, nunca faltou a venda de Xô Boi. Também sai bastante chapéu, lepe-lepe, alpercatas, mas Xô Boi é uma das que mais vendo. Apesar da clientela variada, os homens são os que compram mais e sempre as tradicionais, com pelo. Vendem bastante”, explica Rosa.

Com estilos diferentes a depender do artesão, o preço do calçado é muito acessível, variando entre R$ 70 e R$ 80. Rosa vende opções com e sem pelo, femininas, masculinas, coloridas e infantis – estas últimas custando apenas R$ 60, em média.

Vender, além de ser a paixão de Rosa, é o que ajudou a sustentar a família e suas filhas que hoje ajudam na divulgação da loja nas redes sociais. O gosto pela Xô Boi é de família, seja na venda, divulgação ou mesmo no uso – que é o caso do sobrinho Marcos, que não dispensa o conforto do calçado no dia a dia, utilizando a sandália tradicional para trabalhar em um estabelecimento da capital.

Artesanato que atravessa gerações

Quem visita o Mercado do Artesanato, não pode deixar de reparar a loja de Pollyanna Marques, 37 anos. Repleta de Xô Bois das mais variadas cores, do metalizado ao tradicional, a banca carrega toda a história do mercado, existindo desde a inauguração do mercado, há mais de oito décadas. Junto à vendedora está Maria de Fátima, sua tia, que apesar de aposentada vem todos os dias ajudar na venda da banca.

“Eu fui professora de Geografia, me aposentei, mas não quero ficar em casa, aqui eu vejo uma coisa e outra, chega mercadoria e eu fico entusiasmada com cada coisa linda dessas, como as Xô Bois que são o carro-chefe da banca. Sai muita peça diariamente. Quem trabalhava antes na loja era a minha mãe, ela criou todos os filhos trabalhando no mercado, não negou o estudo a ninguém, todos se formaram. Quando minha mãe faleceu, minha sobrinha Pollyanna assumiu e eu venho pra cá todo dia ajudar e fazer raiva”, brinca Maria.

Tallyta Marques | Investindo por aí

O afeto pela banca também fez parte, desde a infância, da vida de Pollyanna, que hoje assume o negócio e não nega a paixão pelo produto queridinho de vendas.

“Aqui em casa eu já tenho umas sete dessas. Só posso usar calçado de couro porque transpiro muito e o couro ajuda demais nisso. Nem sempre vendemos calçados, inicialmente minha avó e minha tia começaram vendendo bonecas de pano, depois ampliou para redes, mantas e artigos de cerâmica. Eu assumi a loja com 13 anos de idade para bancar meus estudos de colégio, faculdade e pós. Sou enfermeira, mas não exerço, preferi seguir no comércio”, enfatiza.

Curiosamente, a formação ajudou Pollyanna a enxergar as necessidades especiais de alguns clientes. “Como os diabéticos possuem uma deficiência  de coagulação que geralmente ocasiona uma cicatrização muito lenta, a gente não pode nem sonhar que eles se machuquem. Então eu vi uma oportunidade de peneirar os melhores artesãos de calçados em couro pelo Nordeste para oferecer para os clientes diabéticos exatamente o que eles mais precisam: conforto e beleza com preço acessível. A opinião do nosso cliente diabético e com alergias é o norte da nossa empresa, se deu certo pra eles, então a gente tem segurança em investir. Além disso, a gente sempre orienta  que tipo de calçado procurar e quais os cuidados necessários”, destaca.

Fortalecimento do artesanato e o papel do Sebrae

O papel do Sebrae é de fomento e desenvolvimento da atividade artesanal como um todo, auxiliando artesãos na criação de novos produtos e gestão dos negócios, ao mesmo tempo em que trabalha pelo fortalecimento de toda a cultura e história envolvida no processo. É o que destaca Marina Gatto, analista e gestora do Programa de Artesanato do Sebrae.

Tallyta Marques | Investindo por aí

“Quando falamos da Xô Boi, falamos de toda uma história de uma cultura sertaneja, do trabalho com o couro vindo das fazendas e é uma arte que é regional e que precisa ser cada vez mais valorizada. Então o Sebrae busca ajudar principalmente esses artesãos e vendedores que trabalham com esses produtos tanto na parte de gerir, precificar e desenvolver o marketing digital, quanto acessar novos mercados e pontos de comercialização”, diz a gestora.

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