Por meio de intervenções artísticas, Savana Souza é uma das artistas alagoanas que faz um trabalho de inovação na clássica Xô Boi. Diretamente de Arapiraca, o Ateliê Savana existe desde 2016 e trabalha com calçados regionais desde 2019.
O ateliê trabalha com a inserção de elementos culturais locais em produtos redesenhados fora do padrão convencional, com a aplicação de pinturas e modelagens modernas. Os calçados tradicionais são pintados à mão e reestilizados com solados e outros elementos. Um exemplo é a “Xô Touro”,criação do ateliê que consiste na tradicional Xô Boi com solado estilizado em PVC Expandido.
Savana é formada em engenharia civil e trabalhou por quase um ano na área, porém percebeu que sua relação com a arte era muito maior, alimentada desde criança. “Desde a infância, sempre personalizei minhas peças de roupa e acessórios. Quando o ateliê surgiu, priorizei a proposta de usar materiais, mão de obra e elementos tipicamente regionais em todas as nossas peças”, destaca Savana.
O público do ateliê é 90% feminino, porcentagem que, de acordo com a dona, não reflete o consumo do comércio regional da Xô Boi que, atualmente, atrai clientes de todos os gêneros. Para Souza, a segmentação de vendas da Xô Boi vem mudando muito, principalmente pela divulgação do produto em mídias sociais, movimento sentido por ela a partir do surgimento de clientes de outras regiões do país interessados na peça.
“O uso do calçado por jovens e a facilidade de divulgação de produtos de diferentes formas, modelos e cores nas redes, favorece a aceitação do público jovem, impulsionando as vendas. Nos últimos anos, vejo o consumo da Xô Boi em Alagoas, assim como nos demais estados do nordeste, em expansão. Isso me deixa feliz, pois sei que contribuo um pouquinho para a preservação das raízes da cultura nordestina”, afirma.
No ateliê, as peças custam entre R$ 245 e R$ 345. Em relação às vendas, 70% é realizada dentro do próprio Estado de Alagoas e 30% é direcionada para outros estados e regiões.
Apenas o ateliê de Savana vende cerca de 700 pares de sandálias por ano, tanto na loja online quanto presencialmente. Com a integração da Xô Boi a outras peças produzidas no ateliê e a criação de novas coleções, as vendas aumentam naturalmente, mas no mês de junho ganha destaque pelas festas juninas e pela visibilidade da cultura nordestina.
Pela complexidade de mão de obra e maquinário, a produção dos calçados é terceirizada, ficando sob a responsabilidade do ateliê a criação artística dos produtos. As etapas podem levar semanas até a construção do produto final. No caso da Xô Touro ainda é necessária a criação dos moldes dos solados em PVC expandido.
A artista conta que busca sempre envolver fornecedores de produtos e serviços locais. “Buscamos fortalecer essa cadeia produtiva local e com a Xô Boi não é diferente. O Adilson é nosso grande parceiro comercial que acabou se tornando um amigo. Acreditamos que tudo isso ajuda a preservar as tradições culturais da região e a promover a inclusão social e econômica”, ressalta Savana.
Moda nordestina
Para falar um pouco mais sobre a história das Xô Bois e da moda nordestina, conversamos com a professora do curso de Produção de Moda, Pollyanna Isbelo, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), para entender um pouco melhor o assunto.
Confira a entrevista:.
Investindo Por Aí: Como surgiu a moda sertaneja nordestina?
Pollyanna Isbelo: Quando pensamos na moda sertaneja nordestina associamos ao movimento do cangaço brasileiro. O grupo chefiado por Virgulino Lampião gerou um novo estilo estético e produziu uma imagem diferenciada, que o identificava e o distinguia dos demais grupos, com uma indumentária singular, trajes ricamente adornados e bordados. Inúmeras fontes auxiliaram a construir essa estética, como os cordéis, livros, tv e cinema. Desde 1936, com o documentário do cineasta Benjamin Abrahão sobre o lifestyle do grupo de Lampião a cultura estética foi amplamente divulgada e no decorrer do tempo a apropriação desta imagética tornou-se a identidade cultural nordestina.
Passados 87 anos desses registros, observamos a ressignificação e o desenvolvimento de uma indumentária regional com forte identidade cultural, nas quais as representações e percepções associadas aos trajes do cangaço são vistas em expressões artísticas e culturais do nosso povo. A iconografia e os trajes traduzem a imagem sertaneja do herói/heroina forte e valente, capaz de superar as adversidades, tendo as referências de Lampião e Maria Bonita como representações do homem e da mulher do Nordeste em meio às suas lutas diárias de sobrevivência.
No entanto, em meio a este imaginário coletivo, a cultura visual do cangaço vem desenvolvendo narrativas diversas, pop e muitas vezes estereotipadas. A estética é utilizada em amplos contextos no qual a indumentária do cangaço veste hoje o rótulo do regionalismo nordestino.
Investindo Por Aí: Quais são as peças que simbolizam esse estilo?
Pollyanna Isbelo: O estilo pode ser facilmente identificado pela sua identidade visual própria, há uma gama de simbologias associadas aos objetos, cores, materiais e formas. Temos uma paleta de tons terrosos e o colorido da chita, temos também o couro como um dos materiais mais representativos nordestinos, presentes na confecção de vestuário e amplamente em acessórios, como bolsas e calçados, como por exemplo a famosa sandália Xô Boi.
Investindo Por Aí: Por que a Xô Boi é tão forte no agreste e sertão de Alagoas?
Pollyanna Isbelo: A sandália é característica em todo o nordeste, não apenas no estado. Temos um mestre artesão, o Espedito Seleiro, que reside e mantém o seu atelier de produção na cidade de Nova Olinda no Ceará. O mestre artesão é um referencial e um dos nomes mais significativos da estética nordestina. Ele deu continuidade ao trabalho do seu pai, o artesão que elaborou um design exclusivo a pedido de Lampião. O calçado desenhado com solado quadrado para auxiliar no despiste das tropas das milícias, segundo o pesquisador Frederico de Melo. A composição de tons diferentes e os adornos feitos a partir das perfurações no couro são característicos em seu design, remetendo à estética de lampião e que transformaram o calçado em um ícone nordestino.
Investindo Por Aí: Como a peça está sendo reinventada e utilizada atualmente?
Pollyanna Isbelo: Como um produto muito significativo, a produção do Mestre Espedito Seleiro é amplamente copiada, há inclusive sandálias Xô Boi produzidas com materiais sintéticos, o chamado “couro fake”, além de opções em materiais metalizados, brilhantes ou coloridos de acordo com a paleta de cor da estação. É a adaptação de um produto que virou clássico em um produto de moda, que mesmo nestas não descaracteriza o produto original. Aqui em Alagoas já se estabeleceu no mercado um novo estilo para a Xô Boi, não perde em regionalidade e ganha em originalidade e possui identidade própria e artística. A multiartista Sertão adota o calçado regional clássico como suporte e aplica sua identidade estética, transformando as peças em verdadeiras obras de arte, uma moda autoral e ressignificada.