Após um 2024 de recorde de temperatura, com 1,6°C acima dos níveis pré-industriais, 2025 começou com uma sucessão de eventos climáticos extremos no Brasil. Um dos mais alarmantes ocorreu em Recife, que, em 5 de fevereiro, enfrentou a maior chuva já registrada no mês: quase 200 mm em 24 horas — mais que o dobro da média histórica mensal de 91,4 mm e superando o recorde de 122,8 mm de 2009.
O temporal provocou alagamentos, quedas de árvores e deslizamentos de terra, levando a Prefeitura a declarar Alerta Máximo e mobilizar 2.300 profissionais. Entre os impactos mais graves, uma queda de barreira no bairro de Passarinho resultou na morte de duas mulheres, enquanto 224 pessoas ficaram desabrigadas e foram acolhidas em abrigos municipais.
Diante da intensificação de eventos climáticos extremos, surge a questão: o que ainda pode ser considerado “acima do esperado” em tempos de emergência climática? A primeira reportagem da série A (im)previsibilidade do tempo, do Portal Investindo Por Aí, analisa se o setor meteorológico está conseguindo se adaptar a esse novo contexto.
Da infraestrutura urbana à agricultura, passando pelo comércio e serviços, diversos setores sofrem as consequências de eventos climáticos cada vez mais extremos. No entanto, instituições como o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) têm investido em melhorias para aprimorar a capacidade de monitoramento e previsão climática.
A complexidade climática do Nordeste
A doutora em Meteorologia Morgana Almeida, que atua no INMET destaca que a previsão do tempo na região Nordeste apresenta desafios específicos devido à sua localização na zona equatorial/tropical. Isso resulta em uma grande variabilidade espacial e temporal das chuvas, tornando mais complexa a previsibilidade dos fenômenos meteorológicos.
“A região Nordeste tem registrado alguns eventos meteorológicos extremos neste ano, como as chuvas fortes no leste da Paraíba e de Pernambuco no início de fevereiro”, explica a meteorologista.
Ela também aponta que o volume de chuvas registrado nas principais capitais nordestinas nos últimos meses apresenta variações significativas. “Em janeiro, algumas capitais, como João Pessoa (PB) e Natal (RN), tiveram chuvas acima da média histórica. Já Maceió (AL) registrou apenas 62,2 mm, um volume abaixo da média climatológica do mês. Salvador (BA) também teve um janeiro com precipitações reduzidas, somando apenas três dias de chuva”, relata.
Morgana também destaca a frequência e intensidade de eventos climáticos extremos, como secas e chuvas intensas, no Nordeste. “Historicamente, as secas afetam a região Nordeste; além das variações sazonais que agravam as condições de escassez de chuva e, consequentemente, altas temperaturas e baixa umidade no solo e relativa do ar, fenômenos climáticos de escala global, como El Niño, potencializam essas questões”, comenta.
Para maiores detalhes sobre as secas, é possível consultar o portal do Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que utiliza dados do INMET: https://monitordesecas.ana.gov.br/.
O último relatório indica que, no primeiro mês deste ano, devido à predominância de anomalias positivas de precipitação, houve uma melhora generalizada da situação de seca na região Nordeste. Quatro estados deixaram de registrar seca grave (S2) – Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco – e todos os demais apresentaram recuo da seca moderada (S1).
Crescimento no monitoramento climático
O coordenador-geral de Operações e Modelagem do Cemaden, Dr. Marcelo Seluchi, e o coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, Dr. José Marengo, destacam que o número de municípios monitorados pelo Cemaden cresceu consideravelmente ao longo dos seus 13 anos de operação.
Dessa forma, o aumento no número de alertas e ocorrências está diretamente relacionado ao aumento de municípios monitorados, que passou de 888 para 1.133 atualmente. A meta é alcançar 1.942 municípios até 2026.
Número de alertas enviados
Mapa de ocorrências
A cidades do Nordeste com maior infraestrutura para resposta rápida a desastres
Seluchi e Marengo destacam que a eficácia das respostas aos desastres depende, em grande parte, da infraestrutura existente nas cidades e do papel desempenhado pela Defesa Civil. Cidades como Salvador e Recife possuem defesas civis muito bem estruturadas e organizadas, em contraste com municípios menores. “Alguns municípios nem têm Defesa Civil, ou têm equipes sem a capacitação necessária. O ideal seria que a Defesa Civil fosse constante, independente da administração local”, afirmam.
Além disso, os especialistas reforçam que a governança de desastres no Brasil é dividida em dois componentes principais: a emissão de alertas precoces e o monitoramento, sob responsabilidade do Cemaden, e a resposta aos alertas, coordenada pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, que supervisiona as defesas civis municipais.
Assim, a resposta aos alertas não depende apenas da emissão de informações, mas também da estrutura e organização das defesas civis locais.
Como o Cemaden monitora e antecipa eventos extremos no Nordeste
O monitoramento e os alertas de desastres no Nordeste seguem o mesmo processo de todo o Brasil. “Temos uma rede de estações de diferentes metodologias para monitorar chuvas, que é o elemento deflagrador dos dois tipos de fenômenos que alertamos na Sala de Situação: as inundações e os deslizamentos de terra. Os dois tipos de fenômenos ocorrem na região Nordeste,” explicam Seluchi e Marengo.
Eles detalham que na região existem desde grandes bacias, como a do Rio São Francisco, até microbacias urbanas. “Tudo o que acontece no Brasil, praticamente, talvez com exceção das inundações amazônicas, que são muito lentas, todos os outros fenômenos ocorrem no Nordeste.”
A faixa litorânea, especialmente o litoral norte e leste, apresenta grande suscetibilidade e vulnerabilidade. “Algumas cidades como Salvador são particularmente vulneráveis. Salvador é a cidade com a maior proporção no país de população vivendo em áreas de risco,” afirmam.
Os desafios na previsão meteorológica no Nordeste
O grande desafio no Nordeste é a dificuldade de previsão de chuvas. Segundo os pesquisadores, um alerta de deslizamento, por exemplo, tem que levar em conta: 1) a chuva que já ocorreu, que nós capturamos a partir da rede de observação, ou seja, o que aconteceu naquele momento; e 2) a previsão meteorológica.
“Porque nós trabalhamos com limiares críticos de chuva”, pontuam. Eles observam que em regiões como o Sul e o Sudeste, é possível ter uma previsão meteorológica mais clara, mas no Nordeste, fenômenos como ondas do leste, muito menos previsíveis, ocorrem em uma escala espacial e temporal menor.
“Normalmente, as chuvas vêm do oceano, e não há como colocar estações para medir a chuva que está chegando de lá. Isso se faz, basicamente, com radares, que estão colocados propositalmente na linha da costa, para que seja possível detectar a chuva que vem do oceano em direção à costa. Também utilizamos informações de satélites, mas estas, às vezes, não são muito precisas,” afirmam.
Investimentos em tecnologia para aprimorar as previsões meteorológicas
O INMET está reestruturando sua área administrativa e expandindo sua presença nos 27 estados da federação, por meio de novos núcleos de apoio meteorológico inseridos nas Superintendências Federais de Agricultura do MAPA.
“Essa nova estrutura tem como um dos objetivos a diminuição do tempo de resposta nas intervenções de manutenções, preventivas e corretivas, na rede de monitoramento meteorológico do INMET, além de melhorar o atendimento à população”, explica Morgana. “Nesse contexto, está prevista a instalação de, ao menos, 130 novas estações meteorológicas na região Nordeste, considerando apenas um dos projetos para o monitoramento das bacias do Parnaíba e do São Francisco”, complementa.
A meteorologista assegura que a nova estrutura do INMET permitirá a recuperação, manutenção e reativação de estações meteorológicas convencionais na região, consideradas observatórios climáticos do Brasil, algumas com séries de dados centenárias.
Além disso, com o Concurso Público Nacional Unificado (CNU), o INMET contará com 40 novos meteorologistas e mais 40 servidores nas áreas de TI e administração, totalizando 80 novos profissionais. “Essas ações visam melhorar os serviços de monitoramento climático, previsão do tempo e desenvolvimento de novos produtos meteorológicos e agrometeorológicos, para subsidiar as tomadas de decisão em setores como energia e agricultura. As melhorias beneficiarão não apenas a região Nordeste, mas todo o Brasil”, considera Morgana.
O Boletim Agroclimatológico Mensal, que apresenta a análise das condições climáticas observadas no Brasil e suas tendências para os próximos meses, auxilia agricultores e gestores a se prepararem para desafios climáticos futuros. O boletim de janeiro de 2025 pode ser acessado AQUI.
O Cemaden, por sua vez, tem realizado investimentos na área de desastres, incluindo a medição de chuvas. “Temos uma densidade de estações pluviométricas maior em regiões que têm maior quantidade de áreas de risco. O Nordeste não é diferente do restante do país”, afirmam Seluchi e Marengo .
Contudo, os especialistas ressaltam que o orçamento disponível não é suficiente para garantir o funcionamento total da rede de radares e pluviômetros. “A principal dificuldade é manter a rede de radares e a rede de pluviômetros funcionando. O orçamento não é tão generoso como deveria ser, para manter a rede de forma totalmente adequada,” explicam.
Políticas públicas e avanços tecnológicos
As projeções climáticas, conforme o último relatório do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change – AR6), indicam um aumento na frequência de secas e eventos climáticos extremos globalmente, com o semiárido nordestino sendo uma das regiões mais vulneráveis.
A partir disso, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Lincoln Alves, destaca que os modelos climáticos apontam para uma redução das chuvas e um aumento da temperatura na região até o final do século XXI, o que impactará diretamente o bioma da Caatinga. Segundo Alves, isso resultará em “uma mudança na vegetação, com a Caatinga dando lugar a um bioma mais árido” e também levará à “redução da produção agrícola de subsistência, ameaçando a segurança alimentar”.
Tais mudanças evidenciam a urgência de ações estruturais para mitigar esses efeitos, o que reforça a necessidade de políticas públicas voltadas para a adaptação e a redução de riscos. Nesse contexto, Seluchi e Marengo também ressaltam que “são necessárias políticas públicas direcionadas a diminuir o risco que já existe, que preveja planos de redução de risco, planos diretores alinhados com os planos de redução de risco e também planos de contingência”, afirmam.
Eles destacam, ainda, a importância de equipar as defesas civis e treinar servidores públicos, elementos essenciais para uma resposta eficaz a desastres naturais, bem como a necessidade de maiores investimentos em infraestrutura e criação de planos de contingência robustos.
Além disso, Alves chama atenção para o papel das inovações tecnológicas no monitoramento climático. Plataformas como o Portal de Projeções Climáticas e a plataforma AdaptaBrasil MCTI são fundamentais para a análise dos riscos climáticos futuros em áreas como água, agricultura e saúde, permitindo a implementação de medidas mais eficazes de adaptação.
Por sua vez, o pesquisador sênior do INPE, Jean Ometto, também coordenador do Centro de Ciências do Sistema da Terra (CCST/INPE), reforça que, para lidar com os desafios impostos pelas mudanças climáticas, é imprescindível “incorporar no dia a dia da gestão pública e nos diversos setores da economia, a questão climática”. Ometto destaca que os municípios e setores produtivos devem “planejar não apenas para eventos iminentes, mas também para o futuro”, buscando aumentar os mecanismos de resiliência e reduzir a vulnerabilidade a eventos como secas prolongadas, chuvas intensas e ondas de calor.
A incorporação da inteligência artificial e do aprendizado de máquina, segundo Ometto, é um caminho promissor para o avanço no mapeamento de riscos climáticos. A ampliação das bases de dados e o uso de tecnologias de monitoramento, como satélites e sensores remotos, podem permitir uma resposta mais ágil e eficaz, minimizando os danos e ajudando as comunidades a se adaptarem melhor aos desafios climáticos.
Essas contribuições de Alves e Ometto, aliadas ao alerta de Seluchi e Marengo, convergem para uma mensagem clara: a adaptação às mudanças climáticas e a implementação de políticas públicas eficazes nos direcionam para a garantia da resiliência das populações e a sustentabilidade do Nordeste frente aos impactos das alterações no clima.