Os saberes e fazeres acumulados pelas tradições das comunidades quilombolas são fundamentais como fonte de renda e símbolo de resistência econômica. Agricultura, artesanato e turismo são a base da economia desses territórios, garantindo o sustento da comunidade. Atividades empreendedoras desenvolvidas pelos moradores movimentam o faturamento e contribuem para a continuação desses territórios e suas tradições. A região Nordeste possui a maior concentração de quilombolas no Brasil, com aproximadamente 906.337 pessoas, o que representa 68,14% da população quilombola nacional.
De acordo com o Censo 2022, o estado do Maranhão possui o maior número de localidades quilombolas (2.025), aproximadamente 24% do total no Brasil, e uma população quilombola estimada em 269.168 pessoas. Ao mesmo tempo, o estado da Bahia apresenta a maior população quilombola do país (397.502 pessoas) e a segunda maior quantidade de localidades, com 1.814 (21,49%). E de forma geral, essas comunidades vivem por meio da agricultura familiar, turismo de base comunitária e economia solidária. Esses são os caminhos encontrados para que eles possam fortalecer economicamente o território, permanecer no local e desenvolver sua autonomia financeira.
A reportagem especial produzida pelas repórteres Anna Barbosa e Ana Paula Oliveira, em homenagem ao Dia Nacional do Zumbi e da Consciência Negra, mostra como os moradores dos quilombos na região Nordeste lidam com o empreendedorismo para complementar a renda das famílias. Veja os desafios que os quilombolas enfrentam para garantir a própria subsistência, e também conseguir conexões comerciais com as cidades ao seu redor.
Empreendedorismo e autonomia para as mulheres
No Quilombo Cruz de Menina, localizado na Paraíba, a Coordenadora Nacional da CONAQ e líder Bianca Quilombola, conta sobre a necessidade do empreendedorismo como uma das principais formas de sobrevivência para as mulheres da comunidade.
“A gente sempre fala que nós somos viúvas de maridos vivos, porque durante a semana só tem mulher no quilombo. Já no final de semana começam a chegar os homens. E aí, esses homens chegam na sexta e ficam sexta, sábado, domingo e na segunda-feira, na madrugada, eles retornam pros trabalhos nos grandes centros. E nós ficamos na comunidade. E aí, como é que as mulheres se viram?”, questiona Bianca.
“Nós temos grupos de mulheres empreendedoras, onde a gente empreende no artesanato, nos doces, nas geleias, no turismo de base comunitária. A gente empreende de várias formas, para que a gente possa captar recursos, investindo na própria comunidade e tendo liberdade financeira”, conta a coordenadora, sobre como as mulheres buscam soluções juntas.
Esse também é o caso de Dione Maria da Silva, de 40 anos, que se casou aos 20 e dedicou-se aos cuidados do lar e dos filhos até começar a empreender para complementar a renda familiar. “Só o esposo não estava dando certo. Então, como se diz, tive que dar meus pulos. Através de uma oficina que teve aqui na cidade, comecei a fazer os doces. E graças a Deus, está dando certo, está sendo bem proveitoso”, comemora a empreendedora.
Dione começou a produzir os doces no final de 2022. “Eu trabalho com a cocada de abacaxi, cocada de maracujá e o carro chefe da comunidade, que é o pé de moça. Mas também faço doce de mamão, doce de jerimum e o doce Maria da Luz, que é uma nova receita que eu fiz em homenagem à minha avó”, relembra, já que os doces fazem parte de sua história familiar, e ela mantém a tradição da avó. Além deste negócio, ela conta que começou a fazer unhas com 12 anos de idade e que esta é outra fonte de renda e sustento para a família. Determinada, ela revela que tem se aprimorado na área das unhas e que vai fazer dar certo, não importa qual seja o caminho. Como empreendedora, a quilombola se mantém como autônoma e afirma não estar na categoria MEI.
Com o sonho de empreender para fora do quilombo, atualmente Dione vende seus produtos de porta em porta e quinzenalmente no Café Quilombola da comunidade. Sem muito conhecimento sobre empreendedorismo, Dione relata que tem dificuldades em precificar o seu trabalho e ampliar o negócio. “Eu queria empreender para fora. Mas, minha maior dificuldade é como colocar valor no meu produto, como saber guardar o meu e tirar o da empresa”, declara.
A equipe de reportagem do Investindo Por Aí, também conversou com a empreendedora no ramo da beleza, Michele Ione da Silva, de 38 anos. Quando criança, ela tinha o sonho de ser dançarina e fez parte do grupo de dança Oxumaré, do quilombo Cruz da Menina. Esse contato com a dança africana ancestral fez com que Michele e outras crianças quilombolas, pudessem divulgar suas tradições, com apresentações em eventos culturais dentro e fora da cidade.
Já adulta e casada, Michele deixou a dança e deu início à sua caminhada como empreendedora no ramo das tranças, e também se aventurou na costura. “Na minha vida, essa área que eu segui como cabeleireira e trancista vem de muito tempo. Já vem de mim, desde os meus 9 anos de idade que gosto de mexer com cabelo. A parte da trança é de raiz, desde novinha que a gente trançava cabelo e usava as trancinhas rasteiras. Essa forma de trançar coloca nossa ancestralidade pra fora e mostra o que a gente é”, relata Michele. “Trança não é só trançar um cabelo, trança é cultura. Trança pra mim é tudo”, afirma orgulhosa, lembrando que é por meio das tranças que ela apresenta sua comunidade e também seu trabalho aos turistas.
Assim como Dione, a empreendedora Michele também assume sua dificuldade em administrar o negócio sozinha. “Eu não sou MEI. As dificuldades que a gente encontra é um pouco do preconceito em relação às tranças e um pouco da falta de capital de giro pra gente poder levantar mais a área da beleza, poder expandir mais”, desabafa.
Desafios para empreender dentro dos quilombos
A Coordenadora Nacional da CONAQ e líder, Bianca Quilombola, observa que o quilombo é uma comunidade rural, mas que a cidade está avançando em direção ao local – a distância que separa ambos, agora, é de menos de um quilômetro. E mesmo próximo a cidade, a dificuldade em encontrar um emprego formal é uma realidade para boa parte dos moradores da comunidade.
“Não é o quilombo que é perto, é a cidade que tá entrando dentro do quilombo. E aí, dentro da nossa comunidade, eu sempre falo que de 80% a 90% das famílias dependem do Bolsa Família. Um pouco, muito pouco, é assalariado, tem um trabalho na rede pública. E outra parte são aqueles que saem da comunidade para buscar emprego em lugares como João Pessoa, Campina Grande, Natal, Rio de Janeiro e São Paulo”, relata Bianca.
A líder quilombola ressalta a importância de investir no aprimoramento e capacitação das empreendedoras, além do fomento de políticas públicas para o trabalho formal. “É no artesanato, é na costura, é em tudo isso que a gente vai empreendendo. E assim está dando muito certo, agora a gente precisa de acompanhamento e orientação para que possamos trabalhar mais profissionalmente dentro da comunidade, para que a gente saiba gerenciar cada empreendimento”, conclui.
Agricultura familiar e artesanato no sustento dos quilombolas
Em Alagoas, Manuel Oliveira (conhecido como Bié), líder do quilombo Mumbaça, coordenador Geral das Comunidades Quilombolas de Alagoas, coordenador Nacional da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), conselheiro do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial e secretário de Igualdade Racial de Traipu, fala sobre a importância da agricultura familiar como forma de sobrevivência.
“Os quilombos de Alagoas trabalham com a farinha, com a mandioca, com milho e com feijão no período da chuva. Quando passa esse período, trabalham com batata, inhame e amendoim. Algumas áreas têm água minada, como minha região, mas outras não. E aí quando passa esse período das chuvas, ficam a ver navios, não tem de onde tirar o pão”, aponta Manuel Oliveira.
Como dito anteriormente, outra fonte de sustento que os moradores das comunidades têm, é o artesanato, mas que também traz dificuldades para os produtores, impactando na economia doméstica. “Algumas comunidades têm também a questão do artesanato, que seja do bordado, do crochê, da vassoura, do balaio ou da rede de pesca. Mas nem sempre o artesanato dá para a sobrevivência. Primeiro, tem que entender um dos atravessadores: não se vende pelo preço ideal. A minha região é uma região que produz muito artesanato, mas muita gente está deixando de lado. Por exemplo, uma peça que é vendida por R$500 na capital, pode ser comprada por 70 reais em um quilombo. Então, tudo isso termina em prejuízo”, conclui.
Turismo como oportunidade e memória
Professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas, ativista de referência na causa negra e também quilombola, Zezito Araújo nasceu na comunidade quilombola Cabeça de Porco, em São Luís do Quitunde. O Mestre em História Social dá a sua opinião sobre a relevância do turismo na região. “O turismo tem sido um ponto fundamental para as comunidades quilombolas aqui da nossa região. Até porque nós temos tradições artesãs aqui que facilitam muito isso. E esse turismo, ele vem em função de trabalhos artesanais que são seculares nas experiências, principalmente na culinária, na palha, no barro”, descreve.
O acadêmico ainda fez um contraponto importante sobre a exploração do turismo, que é a preservação da memória. “A demanda do turismo, se não houver uma distribuição mais profunda, descaracteriza muitos dos elementos que são tradicionalmente compostos de elementos afro-brasileiros e africanos. Então, você fica produzindo muito mais para o turista e perde a capacidade da preservação da memória coletiva”, observa Zezito Araújo.
Mais dados do Censo 2022
O retrato que se tem da população quilombola, de acordo com dados do Censo 2022, é de maioria jovem. O grupo representa 48,4%, sendo as idades predominantes de 15 a 29 anos (24,7%), seguido de zero a 14 anos (23,7%). A faixa etária que corresponde dos 30 aos 44 anos de idade corresponde a 21,9% da população. A idade mediana de quilombolas foi de 31 anos, enquanto a idade mediana da população geral foi de 35 anos.
Os dados colhidos no levantamento ainda demonstram a insuficiência de informações que temos quando o assunto são as comunidades quilombolas. A subnotificação ainda é uma realidade e a falta de informações precisas impede a compreensão mais profunda do contexto vivido pela população dos quilombos.