Enquanto o mundo busca caminhos para enfrentar as mudanças climáticas, o Nordeste brasileiro já reúne as condições naturais e sociais necessárias para liderar uma verdadeira revolução verde. A região produz quase toda a energia eólica nacional, desponta em energia solar e possui um semiárido rico em soluções de adaptação às crises ambientais.
Mas, apesar desse protagonismo técnico e cultural, o Nordeste ainda esbarra em um velho obstáculo: a falta de políticas públicas estruturantes que consolidem sua posição como vitrine verde do Brasil — e do mundo.
Com o aumento dos eventos climáticos extremos, as empresas brasileiras têm buscado soluções cada vez mais sustentáveis para seus grandes negócios. Não à toa, o termo ESG — sigla para Environmental, Social, and Governance, ou Ambiental, Social e Governança — ganhou destaque como conjunto de critérios para avaliar o desempenho das organizações em sustentabilidade e responsabilidade social.
A pauta também está em discussão no congresso. Em 22 de janeiro de 2025 foi sancionada a Lei 15.103/2025, que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten). A lei visa facilitar o acesso ao crédito para projetos sustentáveis, com foco na transição para fontes de energia mais limpas, reforçando o compromisso do país no combate às mudanças climáticas.
Além disso, a opinião pública tem acompanhado de perto a preparação do Pará para sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que ocorrerá em Belém em novembro. Estima-se que o evento receba mais de 40 mil visitantes, incluindo cerca de 7 mil integrantes da “família COP” — equipes da ONU e delegações internacionais.
Nesse cenário, o Nordeste brasileiro, com seus nove estados e reconhecido como o terceiro maior complexo regional do país, começa a ganhar destaque como exemplo internacional de sustentabilidade. Isso ocorre naturalmente, já que a região já possui visibilidade nacional por suas soluções empresariais mais sustentáveis.
No entanto, é essencial compreender quais projetos estão em andamento e identificar os obstáculos que impedem o Nordeste de se consolidar como uma verdadeira vitrine verde mundial.
Por que a região tem potencial?
Em entrevista ao Investindo por Aí, Mikaelle Farias, ativista climática e estudante de engenharia de energias renováveis, afirma que vê o Nordeste como “uma das regiões mais promissoras do Brasil para liderar a transição para uma economia verde e de baixo carbono”. Ela destaca que isso se deve não apenas aos recursos naturais, mas também à inovação social e à tecnologia ancestral que nossos povos cultivam desde o período do Brasil Império.
O termo utilizado por Mikaelle se refere ao conjunto de conhecimentos, técnicas e práticas transmitidas de geração em geração desde a antiguidade, que orientam a interação com o mundo e a criação de soluções para as necessidades humanas. Esse conhecimento abrange desde o uso do fogo e ferramentas de pedra até a agricultura, medicina tradicional e artes, refletindo uma sabedoria acumulada ao longo da história.
O material Da Taipa à Engenharia: Tecnologia Africana na Construção do Paraná, de Nabor Maurício Oliveira Chagas, aborda o processo de construção do Paraná e destaca como as comunidades africanas atribuíram valor a essas obras por meio de suas ancestralidades. Essa valorização da ancestralidade não é diferente na área ambiental, especialmente no Nordeste, onde, segundo a ativista Mikaelle, esse aspecto cultural é fundamental para o desenvolvimento de soluções sustentáveis.
Ela segue argumentando que as pautas ambientais no Brasil foram impulsionadas por jovens ativistas e destaca que uma das principais ações, dada a importância desses saberes, é “conectar o conhecimento tradicional das comunidades aos espaços de decisão, garantindo que suas vozes e demandas sejam efetivamente ouvidas e consideradas.”
Ela acrescenta que a região possui “uma das maiores incidências solares da América Latina, além de ventos constantes e fortes em áreas como o litoral do Rio Grande do Norte e do Ceará”. Esses dois fatores são essenciais para as medidas de transição energética, uma das principais prioridades dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O ODS 7, que visa garantir o acesso universal a energias acessíveis, confiáveis, sustentáveis e modernas, é crucial para impulsionar a transição para um sistema energético mais limpo e eficiente.
Atualmente, o Nordeste concentra 93% da energia eólica do Brasil, com destaque para o recorde recente de 19.083 MW de geração, segundo a Agência Gov. Além disso, 68% de toda a energia solar e eólica do Brasil é produzida na região. Apenas os estados do Rio Grande do Norte e da Bahia concentram 60% da energia eólica nacional, com mais de 2,8 mil aerogeradores instalados, segundo dados da ABEEólica.
O Brasil superou recentemente a marca de 55 gigawatts (GW) de potência instalada em energia solar, de acordo com a Agência Brasil, e a geração distribuída (GD) tem crescido significativamente, incentivando a participação de consumidores na geração e distribuição de energia, segundo a ABSOLAR.
Em meio a esses resultados, o Nordeste tem conseguido atingir, de forma agregada, seu abastecimento energético integral a partir de fontes renováveis. Em fevereiro de 2024, o relatório semanal do Operador Nacional de Energia Elétrica apontou que a produção de energia elétrica limpa (hídrica, eólica e solar) no Nordeste (15.439 MWmed) superou toda a carga de consumo ocorrida naquele período (13.114 MWmed), sendo o único território do Brasil com capacidade de “exportar” energia limpa para o resto das regiões.
Embora esses resultados já posicionem o Nordeste na vanguarda do processo de transição energética nacional, a região também apresenta grandes vantagens comparativas para o desenvolvimento do hidrogênio verde: “o combustível do futuro”.
O que tem dado errado, então?
A especialista destaca que o governo brasileiro está perdendo a chance de explorar o potencial do semiárido nordestino, um espaço que, apesar de ser uma solução climática essencial, ainda é pouco valorizado em termos de políticas públicas.
O Semiárido Brasileiro abrange nove estados do Nordeste e parte de Minas Gerais, representando 12% do território nacional e abrigando cerca de 28 milhões de pessoas. A região é rica em cultura, recursos naturais e biodiversidade, com destaque para a Caatinga, que oferece soluções para enfrentar mudanças climáticas e desertificação. A seca é uma característica marcante, mas a região também enfrenta monções torrenciais que, em períodos curtos, provocam cheias, revitalizando a vegetação e os reservatórios de água.
O semiárido, com seu vasto conhecimento popular e práticas tradicionais como a construção de cisternas e o uso de sementes crioulas, se tornou um exemplo mundial de adaptação às mudanças climáticas. Esse reconhecimento internacional foi fortalecido no “Intercâmbio Latino-americano de soluções climáticas no Semiárido”, que aconteceu entre 28 de outubro e 8 de novembro de 2024 com a participação de jovens de países como Colômbia, Guatemala e El Salvador. Durante 12 dias, eles conheceram as experiências agroecológicas de adaptação no interior de Pernambuco e Paraíba, promovendo a troca de conhecimentos sobre soluções para enfrentar as mudanças climáticas.
Carlos Magno, membro da coordenação do Centro Sabiá, destaca que o Semiárido, apesar de ser uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas, tem acumulado um conhecimento valioso que pode ser compartilhado globalmente. “Este intercâmbio reforça a importância de colocar o Semiárido no centro das discussões climáticas globais”, afirma.
Além disso, ele destaca a relevância de iniciativas como o Fundo Clima: “Vejo esses projetos como essenciais para viabilizar a adaptação e mitigação no Brasil. Temos uma lacuna significativa nesse tipo de política, especialmente em relação às diretrizes de financiamento. O fundo tem apoiado, por exemplo, linhas de crédito para energia solar em habitações populares, como a Geração Distribuída no Nordeste, mas ainda precisamos de mais apoio para garantir a expansão desses projetos.”
O Programa Fundo Clima do BNDES destina-se à aplicação dos recursos reembolsáveis do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC), instituído pela Lei nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, e regulamentado pelo Decreto nº 9.578, de 22 de novembro de 2018, com alterações no Decreto nº 11.549, de 5 de junho de 2023.
Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, esse mecanismo é um dos principais instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Sua finalidade é assegurar recursos para apoiar projetos e estudos voltados para a mitigação das mudanças climáticas e para financiar empreendimentos que ajudem na adaptação a seus efeitos. O objetivo central é apoiar a implementação de iniciativas, a aquisição de máquinas e equipamentos, e o desenvolvimento de tecnologias voltadas à redução de emissões de gases de efeito estufa.
O que mais pode estar impedindo este processo?
- Embora o Nordeste tenha muitos recursos naturais e soluções sustentáveis, a falta de uma articulação eficaz entre o setor público e privado tem sido um obstáculo para o avanço de projetos de grande escala. A dificuldade de integrar as diferentes partes interessadas em um único projeto impede que a região se torne um hub de inovação verde. Mikaelle destaca a importância de se criar um ambiente de colaboração que envolva governo, empresas, organizações não governamentais e as próprias comunidades.
- A região ainda enfrenta desafios relacionados à falta de incentivos fiscais adequados para empresas que desejam investir em soluções ambientais sustentáveis. Os instrumentos de financiamento e apoio, como o Fundo Clima, ainda não são amplamente acessíveis ou eficientes para pequenas e médias empresas, o que limita o potencial de crescimento sustentável local. Sem um sistema de incentivos mais robusto, o Nordeste perde oportunidades de atrair investimentos internacionais e fomentar o empreendedorismo verde.
- Outro ponto crucial é a educação ambiental, que ainda precisa ser melhorada em muitas áreas do Nordeste. A conscientização sobre a importância da sustentabilidade e os benefícios das práticas ecológicas são fundamentais para engajar as populações locais e garantir que as soluções sustentáveis se tornem parte do cotidiano da região. Falta um maior esforço de capacitação, especialmente nas áreas rurais, para que as pessoas possam adotar e implementar soluções que ajudem a proteger o meio ambiente e a garantir uma transição energética bem-sucedida.
*Esta é a primeira reportagem da série Nordeste Sustentável.